Por Ney Anderson
Sentir medo faz parte da condição humana. O mal pode ser percebido por meio de detalhes, como se observa nos contos de “Inventário de predadores domésticos”, de Verena Cavalcante, primeiro livro da escritora pela Darkside Books, especializada em publicações de terror. É verdade que existem muitas maldades explícitas, mas as situações cotidianas de espanto e horror povoam nas trivialidades na maioria das 26 narrativas presentes na obra. Como no conto “Ralo”, sobre a tia que está na casa de repouso e durante a visita das duas parentes tem uma atitude, no mínimo, repugnante. Ou a menina Dorotéia e o seu preconceito enraizado com os pobres e pessoas negras.
Nascida em uma família do interior de São Paulo, Verena Cavalcante se define como uma “leitora compulsiva” e inclui entre os seus autores favoritos os nomes de William Faulkner, Stephen King, Mariana Enríquez, Lygia Fagundes Telles, Raduan Nassar, Clarice Lispector, Angela Carter e Samanta Schweblin. “Minhas histórias nascem de lembranças do passado, de notícias lidas em jornais, de “causos” contados pelas minhas avós, de medos atávicos, de reflexões sobre a natureza humana, da observação dos insetos, da leitura de textos ocultistas e de coisas sombrias que vivem dentro de mim”, contou em entrevista ao blog da Darkside.
São contos recheados de revolta e perversão. A humanidade trabalhada no livro não é apenas ácida, mas corrosiva até o osso. Os diálogos internos, os pensamentos, as frases bem colocadas mostram uma brutalidade instintiva, por vezes ressentida e represada, desaguando quase sempre em eventos catastróficos e trágicos. Dessas tragédias íntimas e particulares que têm o poder interno de uma bomba nuclear. Textos urdidos em uma espécie de ferro em brasa, que machuca, amedronta e, sobretudo, marca profundamente.
As crianças são as principais narradoras dos contos, por isso impera no livro o medo genuíno, primário, na sua forma “inocente”, nas coisas simples e aparentemente sem importância. Criar personagens infantis, aliás, com dilemas, receios e perversões, não é tarefa simples, mas a autora se saiu muito bem.
O leitor vai sendo fisgado página após página, se impactando com desfechos improváveis e originais, como em “Berço”, sobre a menina que sempre quis ser mãe e vê a oportunidade surgir quando uma mulher chega com a bebê pedindo abrigo na pensão onde a jovem trabalha. Ninguém consegue imaginar o terror a seguir.
Em determinadas histórias, como em “Diário”, o poder do oculto é muito bem utilizado, revelando o erotismo velado e a descoberta da sexualidade. Aqui, a adolescente escreve sobre a paixão por um menino mais velho. A ilusão dela, no entanto, se apresenta muito mais perversa do que o sonho pelo príncipe encantado. “Transmutação” é de uma violência latente, de gente se metamorfoseando através da crueldade, com crianças sendo sequestradas e obrigadas a participar de rituais em um dos contos. São atitudes de puro medo e pânico. A atmosfera é de transe nesse texto, dos mais perturbadores do livro. As analogias sutis entre os insetos e as histórias conectam ao título da obra, a partir da essência do que animais e seres humanos representam na natureza.
O tom do livro é de desesperança na figura humana, destruída pouco a pouca na sua alma, na ambivalência da crueldade pueril. Impossível não se chocar com a criança que foge de casa e se junta aos cachorros de rua, como consequência se tornando animal também. Ou em “Duas bonecas”, triste, emocionante e revoltante história sobre a menina-mãe, estuprada por um homem bem mais velho, nesse mundo caótico que agride o indefeso sem piedade.
Nessa reunião de textos presentes em “Inventário de predadores domésticos”, a autora não deixou a qualidade cair em nenhum momento. Por vezes, é impossível seguir na leitura, tamanho o nível de incômodo retratado em linhas tão ásperas, de alta tensão.
A literatura de Verena Cavalcante é feita para incomodar. Há violência de todas as ordens: feminicídio e agressão contra a mulher, infanticídio, parricídio e assassinatos diversos, entre outras pequenas tragédias cotidianas, tudo isso com causa e efeito, nunca por acaso. É um mundo onde impera o caos, organizado em uma escrita virtuosa, difícil de esquecer.
Não é de hoje que narrativas ficcionais tentam compreender e dar forma à relação ambígua entre pais e filhos. Quase todos os casos na literatura tentam conectar os sentimentos de amor às avessas pelo outro com a vivência pedregosa que desaguou tal condição de afastamento.
Perversão e desamparo
O ajuste de contas com o passado mostra como a memória é um terreno movediço e nebuloso. Não é diferente no romance “Vantagens que encontrei na morte do meu pai”, de Paula Febbe, também publicado pela Darkside. A sinopse do mais recente livro da escritora paulistana, que cita a perversão e a psicose como os temas de seus romances, nos apresenta o desamparo paterno, os traumas e hiatos da personagem Débora relembrando cenas passadas com o pai já falecido. A autora de “Metástase” e “Relato inspirado por orelhas” volta com um livro que curiosamente fala de amor, ainda que seja um amor corrompido, corroído, gasto por atitudes vãs entre os dois. Débora tenta se descobrir a partir da memória do homem que lhe relegou ao escanteio na infância e adolescência.
O relato de Débora acontece pouco tempo após a morte do pai, carregado de profunda raiva em determinado momento, por conta de ele ter sido, acima de tudo, abusador e machista. O amor dela é baseado curiosamente nessa dor, culminando na sua vontade incontrolável de praticar o mal.
O falecimento do pai acontece por conta de um câncer agressivo. A experiência em vê-lo sucumbindo dia após dia transforma Débora em outra pessoa. São passagens comoventes, como no sonho dela com o pai se curando e arrancando o aparelho que o mantinha vivo.
É uma escrita absurdamente sedutora, que enlaça. No início, o leitor é levado por um caminho de pena da personagem, mas no desenrolar da história é jogado abruptamente para o outro lado. A narrativa em primeira pessoa é apenas cortina de fumaça sendo desfeita em toques homeopáticos, apresentando depois a verdadeira face da história.
Luto e melancolia são coisas díspares para a narradora, com o estranho sentimento de saudade e as marcas que a personagem carrega, usadas para algo cruel como vai sendo mostrado no decorrer da trama. Algo sombrio na mente da personagem, despertada na sua relação conflituosa. “Vantagens que eu vi na morte do meu pai” tem uma escrita bem intrincada, no confronto entre raiva, paixão doentia e sede por crueldade.
O fato de ela ser enfermeira tem tudo a ver para a realização dos seus desejos macabros, no prazer mórbido pelo sofrimento alheio. Os capítulos são intercalados com histórias de pacientes atendidos por ela. Esses são, inclusive, pequenos contos trágicos. Ajudam no clima sinistro e na ambientação por onde circula essa incomum profissional de saúde. Os diálogos entrecruzados, inclusive, mostram a mente perturbada dela, que não para nunca.
Aos poucos, o leitor vai entendendo onde Débora vai se metendo. Tudo isso ancorado no combustível da memória fragmentada da narradora, que lhe serve tanto para a sobrevida quanto para a explosão dos atos cometidos.
A escrita de Paula é ágil, mostra uma personagem meticulosa na sua maldade. É alguém na corda bamba de vítima e vilã. A autora maneja muito bem o fio narrativo do suspense, da surpresa que virá nas páginas seguintes. Através do relato frio, a narradora conta toda a sua história para o interlocutor invisível, seus leitores, que nada podem fazer, apenas sentir a pancada da perplexidade.
Destaque para os primorosos projetos gráficos das obras que ajudam a conectar o desenrolar das tramas, sendo tão sombrios quanto as próprias histórias. A ficção de Verena Cavalcante e Paula Febbe é macabra, habita o mesmo espaço, embora por caminhos distintos. O fato é que elas provocam medo, repulsa, espanto e admiração com a mesma intensidade, cada uma ao seu modo autêntico, mostrando como o terror, o horror e a perversão podem surgir por meio de fatos comuns e triviais do cotidiano. São narrativas para os que adoram tomar sustos e sentir calafrios, e ainda assim sair das leituras sorrindo, nervosos, de satisfação.
“Vantagens que encontrei na morte do meu pai”
• Paula Febbe
• Darkside Books
• 224 páginas
• R$ 54,90
“Inventário de predadores domésticos”
• Verena Cavalcante
• Darkside Books
• 240 páginas
• R$ 59,90
- Resenhas publicadas originalmente no Caderno Pensar, do Estado de Minas, no dia 24/06/2022