Por Ney Anderson

Foto: divulgação
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Alguns autores não conseguem amadurecer artisticamente, elevando a própria obra para outro patamar, continuando sua forma de expressão de forma maior, singular e com mais segurança. O estilo que vai sendo moldado ao longo da carreira do escritor é algo importante, pois ali reside o seu carimbo, a marca pessoal e intransferível. Lógico que diversos autores conseguem isso, mas outros ficam patinando sem sair do lugar. Não é o caso de Biofobia (Ed. Record, 240 págs, R$ 30), oitavo livro do escritor Santiago Nazarian, que mostra consistência na volta ao universo adulto.

Só ele poderia ter escrito esse romance, até porque existe uma aproximação entre criador e criatura. Especialmente nessa nova história, com elementos que podem soar autobiográficos. Todas as angústias de André, personagem principal do livro,  o medo da idade, do sucesso que passou, tudo isso de alguma forma representa o que o próprio Nazarian transmite em suas publicações nas redes sociais e no blog que mantém. Embora o autor esteja longe da decadência artística. O livro vai além, lógico. Se percebe um clima claustrofóbico, apesar da casa grande onde o protagonista está. O suspense é bastante representativo nessa obra, com André achando que o mato quer invadir a casa, tomar seu lugar de direito, já que a invasora ali é ela (a casa) e não o contrário.

O protagonista, que é um rockstar falido e sem perspectivas de futuro, foi muito bem concebido. Ele está na casa da mãe, que é uma famosa escritora , não por vontade, mas por conta da morte dela, que cometeu suicídio, aparentemente sem nenhum motivo específico. André fica responsável, junto com a irmã, dos tramites que envolvem a venda do imóvel e a divisão de tudo o que há nele, principalmente os livros, que enchem as paredes do lugar.

A ida de André para essa propriedade no meio do mato é acompanhada de angústia, solidão, já que ele vai relembrando das coisas da própria vida, da fama que passou. A casa, inclusive, não desperta nenhuma emoção nele, por não ter feito parte da sua história. Na verdade não existem sentimentos amorosos nele, a única coisa que o preocupa é ele mesmo e se vai conseguir ganhar alguma boa quantia para organizar a vida. O tom do personagem é de bastante acidez. No começo do livro ele diz que a mãe estava por “todos os lados” da casa, os restos dela, ou o reflexo de quem passou por ali, por conta de objetos tão pessoais, como os livros e o pêndulo do relógio batendo. “A mãe materializada em muito mais do que uma carcaça”. A ironia nesse romance é cortante, de raiva mesmo com o mundo e com as pessoas, como alguém que não consegue ver nada positivo, a exemplo do seguinte trecho. “Sobre a pia, encontrou os cremes da mãe, óleos, hidrantes, antirrugas. Não fizeram muita diferença num corpo cremado, a não ser que a pele hidratada tenha levada mais tempo para queimar. Restos de vaidade virando fumaça”. Todo esse veneno vai sendo destilado por toda a obra e sem moderação.

Biofobia (veja o booktrailer ao lado) tem uma força psicológica muito grande, página após página a mente doentia do protagonista vai se revelando perturbadoramente, mostrando que ele é um perdedor na vida, apesar de tudo o que conquistou, e não se conforma com isso. A voz no livro é praticamente única, alternando um narrador onisciente e a primeira pessoa, o que deixa o livro mais próximo ainda do leitor, apresentando a atmosfera sombria que acontece durante os dias que André permanece na casa. Alguns elementos ajudam a compor o thriller, como o cachorro que some misteriosamente, pancadas nas paredes, a mãe que aparece nos pesadelos ou nos delírios. As cenas dos parentes de André pegando os objetos da casa, como se nada tivesse acontecido ali, são bastante representativas. É talvez uma metáfora muito bem pensada para dar a ideia da própria situação do personagem central da trama, que também foi ficando vazio ao longo dos anos e não resta muita coisa, apenas uma fachada (decadente) e nada mais.

O romance faz referência a escritores, livros e cantores, mas não é exatamente uma homenagem. Até nisso Santiago Nazarian não faz concessões, se é para falar mal de gente bem próxima, ele fala, sem ressentimentos, para contextualizar o clima da história. Biofobia tem poucos personagens, pontuais, como os dois amigos de André, a ex-namorada, a irmã, o advogado que ajuda na burocracia para vender a casa, e a empregada.  O autor conseguiu transformar o mato em algo de fato amedrontador, mas por conta da loucura que André transmite, entrando em surto total, como se a vegetação fosse destruir tudo aos poucos. O livro nos mostra o que pode haver de pior em nós mesmos e como não temos controle quando a loucura se instala de uma hora para outra. Quem acompanha a carreira de Nazarian, percebe uma maturidade incrível nesse livro, que se apresenta a melhor obra da carreira do autor paulista, com todos os elementos característicos de sua produção, agora em nível elevado e consistente.

Na literatura parece que existe para muitos escritores o compromisso com a crítica especializada. Esses autores quase sempre produzem uma arte pasteurizada para agradar alguns poucos e ser aceito mais tranquilamente no meio literário. O “artista” que faz isso revela explicitamente que tem medo de enveredar por caminhos não tradicionais, e não consegue ir além, sem as amarras do mercado editorial que se preocupa apenas com o consumo fácil e descartável. Nazarian vai justamente nessa contramão mercadológica, e faz muito bem agindo assim, lançando um livro de terror psicológico, depois de ter publicado um romance juvenil.

Alguns podem classificar Biofobia de alternativo ou underground, mas isso desmerece uma das vozes mais originais da literatura brasileira contemporânea. No entanto, se Santiago Nazarian continuar com essa mesma pegada e qualidade indiscutíveis, que continue sempre sendo adjetivado dessa maneira. Melhor para os leitores inteligentes, que sabem escolher os autores que de fato interessam e se preocupam com a obra de arte literária.

 

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