Por Ney Anderson

Em homenagem aos 10 anos do Angústia Criadora, escritores de todo o país falaram com exclusividade ao site sobre literatura, processo criativo, a importância da escrita ficcional para o mundo e para a vida e diversos outros assuntos. Leia a entrevista a seguir com o convidado de hoje. Divulgue nas suas redes sociais. Acompanhe o Angústia Criadora também no Instagram: @angustiacriadora e Facebook: https://facebook.com/AngustiaCriadora

 

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Sidney Nicéas é escritor e tem cinco obras publicadas – prepara dois romances para breve, um biográfico e outro de ficção. É editor do Blog Tesão Literário (blog de literatura do Portal Ver Agora), colunista de Literatura das Rádios CBN e Transamérica CNN. Preside a Ideação, co-realizadora da Bienal Internacional do Livro de Pernambuco. Também é Relações Públicas com MBA em Gestão de Pessoas, Pós-Graduado em Escrita Criativa e titular da própria assessoria de comunicação, a Sidney Nicéas Comunicação Integrada. Ainda integra os projetos sociais Sertânia Sem Fome e Mundo do Lua, além de promover diversas ações que visam a inclusão social pela Literatura. Contato: sidneyniceas@gmail.com.

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O que é literatura?

É uma caixinha interessante de rótulos e exercícios do pensar. Focando no termo enquanto campo da leitura e escrita literária, é a veia da minha alma. E o maior instrumento para o aprimoramento humano. (no dia em que o Brasil compreender isso, avançaremos como nunca antes)

O que é escrever ficção?

É fazer o que nos torna deuses, criar; e o que é a ficção senão a liga que ajunta as infinitas brechas no que chamamos realidade, feita da sua mesma argamassa? Escrever ficção é enxergar e alargar essas brechas, materializando uma “configuração do imaginário”, como definiu Iser. Por outro lado, também é a minha não-camisa-de-força para encarar a vida.

Escrever é um ato político? Por qual motivo?

Pensar é um ato político, escrever mais ainda (justo por oferecer ao mundo a parte materializada desse pensar). A confusão sobre o que significa política (e sobre o exercício cotidiano e rotineiro da política) avacalhou o cerne da questão. Não há escrita sem posicionamento, sem o oferecimento da discussão, de um exercício da retórica, do pensamento crítico.

Você escreve para oferecer o quê ao mundo?

Sempre me pergunto o que vim fazer nesse mundo. Questiono isso desde que me entendo por gente. Essa preocupação sobre quem sou e o que posso ser me arrastou para o mundo literário e ainda mais para a escrita. Não tenho ilusões quanto ao mundo enquanto globo, mas chegar ao mundo interno do leitor, sacudi-lo e deixá-lo ao menos com algumas dessas (e outras) inquietações pode ser a resposta para essa pergunta. Todo escritor, no final das contas, é um pretensioso.

O que pretende tocar com a palavra literária, com a ficção?

As hipocrisias humanas e essa ausência do pensar me incomodam muito, essa superficialidade que move as engrenagens da nossa vida social. Este mundo acéfalo e manipulador nunca deu certo e se perpetua. Talvez resida aí um grande combustível para o meu fazer literário: mexer com o pensamento. Esses paradoxos e paroxismos me interessam bastante. Como dito, ocupar as brechas do que se convenciona realidade com esse tipo de argamassa sempre me foi instigante. Eis a minha ficção.

Um mundo forjado em palavras. Se o tempo atual pudesse ser resumido no título de um livro, seja ele hipotético ou não, qual seria?

“Esse Tempo é Foda!”. (venderia pra caramba e seria uma merda) Ou “A Água na Beira do Ralo”. (esse até poderia dar ‘caldo’…)

A incompletude faz parte do trabalho do ficcionista? No sentido de que nunca determinado conto, novela ou romance, estará totalmente finalizado?

Sem dúvidas. Alguém falou certa vez (e não estou lembrando mesmo quem foi) que o escritor desiste da obra para publicá-la – acho que foi Wellington de Melo quem me citou isso. Há um embate eterno entre autor e obra, o perfeccionismo, a vaidade, o auto compromisso, o que se pretende e o que se entrega no final das contas. Essa angústia literária é latente. E pra mim inevitável. Agora, esse desejo geral por completude é uma ilusão. A liberdade de ousar dentro dessa incompletude talvez seja o que há de mais belo na escrita.

Qual o pacto que deve ser feito entre o escritor e a história que ele está escrevendo?

O compromisso com o que se propôs a escrever, ainda que isso, muitas vezes, acabe ficando mais claro no desenrolar do processo. Sempre dou essa dica para meus alunos: propósito, proposta e função. O que se quer com o texto, como o talhará e a que ele (e tudo nele) serve. Quando esse pacto é bem engendrado, chegar aonde se quer fica menos complicado.

O que pode determinar, do ponto de vista criativo, o êxito e o fracasso de uma obra literária?

Lembro uma máxima meio batida, mas sempre atual: uma ideia só é boa se puder ser colocada em prática. É sim, porém, a viagem criativa acaba sofrendo com a tendência clássica em empacotar tudo. “O bom senso é quadrado”, já dizia Nabokov. Por isso reforço a trinca anterior (proposta-propósito-função) como esteio para facilitar o processo. Encontrar as vias dentro desse paradigma é vital. Vale ressaltar, por outro lado, que no final das contas êxito e fracasso são palavras bem relativas. Talvez tenhamos normalizado tanto a cultura de prêmios ao analisar a produção literária que ter êxito ou fracassar acabem gerando tanto pavor. O compromisso do escritor com o que ele quer e acredita vale mais, mesmo que o resultado não seja reconhecido.

Como surgiu em você o primeiro impulsivo criativo?

Crianças são artistas por natureza. Minha mente sempre foi uma viagem. Brincando sozinho ou com meus irmãos, imaginava tudo, lia muito. A criatividade se manifestava naturalmente e minha realidade sempre foi uma bela ficção. Na adolescência, mesmo tendo jogado futebol nas categorias de base dos três principais clubes de Pernambuco (era goleiro e estava num bom caminho para me profissionalizar quando “desisti”), eu já demonstrava bons sinais conscientes ante um mundo quadrado. Gostava muito de desenhar, criava uniformes do meu time de futebol de botão, escrevia letras de música, poemas aqui e acolá. Fiz teatro aos 17 e no ano seguinte criei um jornal anônimo na faculdade – eu e uns comparsas maravilhosos, ninguém sabia quem produzia o periódico, a distribuição burlava a vigilância da faculdade e causávamos muita repercussão, já que o conteúdo era crítico e sarcástico (eu escrevia algumas matérias e diagramava também). Tudo me levou para a criação. Foi no teatro que produzi meu primeiro texto literário, a peça “Cinzas da Paixão”, totalmente produzida num momento de ‘bode’ por conta de uma desilusão amorosa. Aí a vida adulta foi se impondo, meus demônios auto enxergados, uma necessidade imensa de mudança dentro e fora, uma quase repulsa desse formato social vigente… A escrita acabou sendo a minha rede, onde me deito e sonho sonhos intranquilos. Sem isso, talvez não estivesse respondendo a essas questões e estaria recebendo visitas num manicômio (ou nem isso).

As suas leituras acontecem a partir de quais interesses?

Tudo que tenta debulhar esse complexo extraordinário que é o ser humano, a vida humana, me interessa demais. Mas não fico escolhendo rótulos nem gêneros. Todos os livros que chegam até mim (ou eu até eles) sempre leio algumas páginas para sentir a escrita, o autor, como um breve estudo. É comum que eu sublinhe algo, bote um marcador. Até o dia que o livro diz: agora sou eu! Aí boto ele pra dentro (claro que alguns não me atraem, muitas vezes pela escrita pueril ou sem maior vigor). Às vezes são autores que nunca li e quero degustar; outras, obras de amigos que ainda não li; em ocasiões é o momento que me puxa pra determinado tipo de leitura. Não há um padrão. Leio ficção, poesia, não-ficção, filosofia, espiritualidade… Gosto de ser surpreendido. E são os livros que me surpreendem que me fazem um re-leitor.

Escrever e ler são partes indissociáveis do mesmo processo de criação. Como equilibrar o desejo de ler com o de escrever?

Isso é um baita desafio. O sonho de todo escritor, acredito eu, é viver da escrita. Gastar muito mais tempo lendo, escrevendo, criando, experimentando mais. Temos um modo de vida que vai na contramão do que nos alimenta a alma, que tolhe a ludicidade da mente, que bota seus tratores para atropelar e derrubar o espírito criativo (ainda que no discurso se cobre criatividade). O tempo se tornou uma brincadeira de mau gosto. Tudo corre demais e não é coincidência vivermos com tantos males exógenos que vão apodrecendo corpo, mente e alma. O mundo caminha para mudanças, mas tudo é muito lento. Cabe ao escritor encontrar a chave para equilibrar essa danação. Eu sou muito amigo da madrugada. Ela normalmente me salva de ser ‘apenas mais um tijolo no muro’.

Um escritor é escritor 24 horas por dia? É, ao mesmo tempo, uma benção e uma maldição?

Posso falar por mim, sou salvo por essa maldição diuturnamente. O Sidney criativo está o tempo todo percebendo coisas interessantes, mesmo as absurdas e que incomodam a ponto de ferir. Tudo me é combustível para a escrita. Nesse sentido, tenho muita sorte de viver em tempos pobres e paradoxalmente ricos.

O crítico Harold Bloom falava sobre o fantasma da influência. Você lida bem com isso?

Sim. Até porque comecei a publicar há quase duas décadas por enxerimento – tudo desde então é aperfeiçoamento, estudo, leitura, escrita. As influências (e até as intertextualidades – e as intratextualidades, por que não? – que Bloom tanto realçava) são importantes para que o escritor se encontre. Há até quem escreva tendo isso como premissa. Aliás, os textos de gaveta (aqueles que jamais serão publicados!), normalmente tão carregados de influências, são caminhos interessantes para se encontrar. E quando o escritor se encontra, isso não mais o assombra.

O escritor sempre está tentando escrever a obra perfeita?

Sempre, mesmo que diga o contrário. É um bicho enxerido.

Como Flaubert disse certa vez, escrever é uma maneira de viver?

Eu implodiria sem a escrita.

Quando você chega na conclusão de que alcançou o objetivo na escrita (na conclusão) da sua história?

Preciso sempre de tempo para me distanciar e sentir o texto. Normalmente eu me conformo que cheguei aonde quis para concluir a obra. Estou sempre buscando a consciência dessa incompletude.

A literatura precisa do caos para existir?

Tudo necessita do caos. A existência é o caos. A literatura é uma fagulha disso, talvez a mais ousada fagulha.

O escritor é um eterno inconformado com a vida?

Quem se conforma com a vida não tem consciência do que é viver. O escritor é um ousado que tenta achar brechas mais ou menos conscientes nesse inconformismo, rumina a vida pela escrita, talvez até se conforme com esse inconformismo.

Cite um trecho de alguma obra que te marcou profundamente.

“Um chute sacudiu a porta. O rapaz deu um salto adiante. Juntando todas as forças, ele removeu a bancada e abriu a porta. De pé na soleira estava um colosso de barba ruiva e crespa, camisa aberta, descalço, com o rosto afogueado, suarento. Mascando uma espiga de milho assado, que segurava com a mão, ele passeou o olhar pela oficina, viu a cruz encostada na parede e franziu o cenho. Estendeu então a perna e entrou.

Sem dizer palavra agachou-se num canto, mordendo o milho com violência. O rapaz, ainda de pé, mantinha o rosto virado para o outro lado, a olhar para fora, pela porta aberta, a rua estreita, despertada antes da hora. Não havia poeira no ar; o solo ainda estava úmido e perfumado. O orvalho e a luz da madrugada gotejavam das folhas de oliveira ali em frente; a árvore ria por dentro. Encantado, o rapaz aspirou o mundo da manhã.

– Feche essa porta – rosnou o Barba-Ruiva, voltando-se para ele.

– Quero dizer-lhe algo.

O rapaz estremeceu ao ouvir a voz brutal. Fechou a porta, sentou-se na beirada do banco e esperou.

– Cheguei. Tudo está pronto.

Ele jogou fora a espiga de milho. Levantando os olhos azuis e cruéis, fixou-os no rapaz e esticou o pescoço gordo e muito enrugado.

– E você? Você também está pronto?

Havia mais luz agora. O rapaz via com maior nitidez o rosto grosseiro e nervoso do Barba-Ruiva. Não era um rosto, e sim dois. Quando uma metade ria, a outra ameaçava. Quando uma sentia dor, a outra continuava rígida, imóvel. E mesmo quando os dois lados se harmonizavam por um instante, por baixo da reconciliação era possível perceber que Deus e o demônio estavam em luta, irreconciliáveis”.

(Judas, o Barba-Ruiva, vai ao encontro de Jesus, trecho de A Última Tentação, de Nikos Kazantzakis – primeira aparição de Judas na obra… que apresentação de personagem!)

Apenas um livro para livrá-lo do fim do mundo em uma espaçonave. O seu livro inesquecível. Qual seria?

Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino. (um só é lasca!)

Qual a sua angústia criadora?

Saber que jamais serei quem eu quero ser enquanto criador – ou seja, a criatura está sempre insatisfeita (mas ousando). Isso, por outro lado, torna o caminho muito mais interessante.

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