Cristovao Tezza fotografado no Museu Oscar Niemeyer (MON), em Curitiba. Foto: Guilherme Pupo

Por Ney Anderson

“Numa noite qualquer, o professor aposentado Manuel recebe em sua casa uma visita estranha com um pedido inusitado: Izolda, uma dona de pensão com aparência vulgar, entrega dois pacotes amarrados de qualquer jeito contendo originais de um jovem-poeta-marginal-suicida. A mulher quer que Manuel leia o espólio de Paulo Trapo, o artista em questão, e decida se aquilo tem valor”. É sobre essa ideia que se inicia o romance Trapo (Record), que Cristovão Tezza lançava há trinta anos, e ressignificava a carreira do autor.

Nesse primeiro momento, Manuel não vê nada demais no textos, nem a possível genialidade que a dona da pensão tanto acredita. Porque, para ele, são poesias juvenis, baseada em uma anarquia que o professor entende por gratuita, sem substância. Incluindo o próprio suicídio. Mas na medida que vai avançando na leitura, o professor começa a ter uma admiração pela pessoa do poeta. Ele se seduz com a ideia do destino dele cruzar com o do jovem artista, ou da história dele.  Isso faz com que o aposentado execute pequenas mudanças na própria vida, na rotina, por conta dessa influência repentina, questionando a sua trajetória até aquele momento. Trapo lhe tira da monotonia. Porque ele é, antes de tudo, um anárquico, desfazendo da poesia dita culta, que a maioria (incluindo o professor) julga como a correta.

Além dos poemas, existem várias cartas no pacote recebido por Manuel. Uma espécie de autobiografia sentimental. O poeta relata muita coisa, inclusive a ligação com um galo de estimação. É possível conhecer o personagem não apenas pelos poemas, mas através desses relatos e da confissão dos amigos, que tinham na figura do jovem uma verdadeira inspiração. Trapo mantinha, por exemplo, um ódio incontido pelo o que o pai representava. O jovem mantinha correspondência com uma mulher, a sua grande inspiração (e obsessão), mas de amor impossível, que o leitor vai descobrindo o motivo no decorrer da trama, que se passa em Curitiba, em 1978.

Essas cartas são inseridas no romance no exato momento que o professor ainda está começando a saber quem é o artista. Já no início existe o contraponto de Izolda falando sobre o ex-inquilino e o que o narrador pensa através da leitura do material. Para tentar entender a cabeça do rapaz de forma completa, o professor percorre os locais frequentados por Trapo e vai conhecer os familiares.  Ele, então, vai juntando os pedaços do personagem que ele não conheceu, empreendendo uma busca para descobrir quem foi verdadeiramente essa pessoa que ele nunca ouviu falar.

O professor vai tentando entender o motivo do suicídio do poeta. E descobre que por trás de algo aparentemente inconsequente e bobo, a personalidade e a complexidade do personagem é grandiosa, porque Trapo foi alguém que viveu eternamente embriagado. “Pela bebida, pelo fumo, pelo ego, pelas letras e pelo amor”.

E tudo é conduzido através da subjetividade do morto, um desenho que vai sendo montado a partir da obra. O rosto dele, por exemplo, nunca aparece, a não ser por uma pintura feita por um dos seus melhores amigos. Trapo é culto, leitor voraz e inquieto. O mundo parece ser pequeno para ele. O livro é muito sobre o mito do artista tido como genial por um pequeno círculo, que dá cabo da própria vida, deixando um “espólio” que alguns julgam se tratar de obra-prima.

O romance é um grande jogo metaliterário, porque é a própria história do professor que tem a vida “invadida” por Trapo. O que se lê, portanto, é a homenagem para o Trapo, personagem ficcional. Não através da publicação do que ele deixou, mas o livro sobre a história dele escrito pelo professor, como narrador da obra e personagem central. Manuel pode ser até entendido como o alter-ego de Tezza.

“Não tive filhos, não plantei árvores, não escrevi um livro, como exige o ditado. Agora tinha a chance de eliminar dois itens: o filho – Trapo – e o livro. E havia algo neste filho nascido morto que era um mistério maior, sob o pretexto da literatura: a morte. Entendê-la em Trapo era entendê-la em mim. Talvez essa – e o álcool me estimulava a elecubrações – talvez essa a razão de recusar e querer Trapo tão sistematicamente. Por trás do comodismo, o medo da revelação. Trapo exige um mergulho que é também um mergulho na minha própria realidade, à tristeza bem comportada da minha solidão. A literatura, mero pretexto. Interessa-me a figura torturada que deu um tiro na cabeça. Não entendo – e, súbito, a ideia me faz suar, a extensão da minha mediocridade – não entendo como me arrastei décadas e décadas sem dar um tiro na cabeça”

Tezza já demonstrava em Trapo uma das peculiaridades da sua ficção, que é a densidade dos narradores, sempre sobrepondo as histórias com fluxo interno de consciência e diálogos para si mesmos, fazendo o leitor entrar de forma imersiva na mente dos personagens. Como os pensamentos, reflexões e várias cenas esmiuçadas do cotidiano do professor. É uma prosa cheia de tentáculos e portas abertas para o desenvolvimento humano das figuras que caminham por sua ficção.

É um livro-labirinto. Cheio de pontas soltas, que Manuel vai tentando amarrar para encontrar alguma lógica na vida do artista. Mas qual vida tem lógica, afinal? Principalmente a vida de alguém tão fragmentado quanto a do poeta. É uma história de muitas perguntas e poucas respostas, como a própria criação literária. 

Longe de ser uma literatura datada, Trapo é um exemplo excepcional de criação literária, que é atemporal. Nesta edição comemorativa esta presente o posfácio da primeira edição, escrita por Paulo Leminski, e também o ensaio crítico da professora universitária Beth Brait. Além de posfácio inédito de Cristovão Tezza. Ele diz, entre outras coisas, que o romance foi o responsável por lhe tirar do anonimato no mercado literário, depois de quase dez anos de uma carreira, até então, desconhecida, inclusive na própria cidade do autor, mesmo com quatro livros publicados. “Do ponto de vista prático, o relativo sucesso do romance me abriu as portas das editoras. De qualquer forma, é bom relembrar que escrever literatura nunca será simples, nem fácil; e a dificuldade de publicação e, sem seguida, a angústia do reconhecimento crítico são parte integrante do pacote de quem quer que mergulhe no projeto insano de se tornar escritor. É preciso aguentar esse tranco – e, mais uma vez, estamos no terreno extraliterário. O jovem personagem Trapo em boa medida é uma projeção dessa angústia”.

É um texto que se renova a cada leitura e lança luz para diversos aspectos, sobretudo a efemeridade da vida e obra do artista, intimamente ligados por uma linha invisível. É impossível não amar Trapo, esse poeta-suicida, onde todos nós saímos impregnados da sua presença. Ou melhor, da sua ausência.

Estou impregnado de Trapo, da profusão de imagens, sensações, trocadilhos, metáforas, palavrões, lugares-comuns, vôos rasantes e vôos altos, uma caverna de paixão e desespero. Que diferença de mim, que suave inveja!Cinco ou seis Trapos se misturam, sem cronologia. Não será fácil classificá-los. Talvez por assuntos – o poeta, o metido a filósofo, o memorialista – mas todos se somam. Um pânico me atormenta, faltam-me condições para a tarefa de restaurar o poeta suicida. Merecerá ele restauração? Uma enrascada, agora que os textos estão oficialmente nas minhas mãos”

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