Por Ney Anderson

A maioria dos autores imprime um estilo em seus livros que muito diferem deles mesmos. Basta encontrar com alguns em feiras literárias ou bienais. Quase sempre é difícil imaginar que o escritor em questão foi o responsável pelo desenvolvimento de tal obra, tamanho é o deslocamento que existe entre criador e criatura. Em Big Jato (Cia das Letras, 184 páginas, R$33), do cearense radicado em Pernambuco, Xico Sá, essas questão não se aplicam. Quem já viu o autor em programas de televisão com sua peculiar forma em tratar de diversos assuntos, não perceberá essa ausência no seu romance. Estão lá as frases espirituosas, as histórias reais, ou não, do sertão e, sobretudo, a rapidez no raciocínio. Big Jato, o primeiro romance do autor, é uma história de uma família que vive das fossas do Vale do Cariri, no Ceará, em que o real, aparece mais como um pano de fundo para histórias de uma época. O personagem principal do livro (o velho) é o quem dirigi o caminhão limpa fossas por todo o Vale, e vê nessa atividade uma maneira de se orgulhar da vida. O narrador, filho do velho, é uma espécie de alter ego de Xico Sá, que escuta as histórias do pai, e também do tio fã dos Beatles, e começa a compreender melhor o mundo ao seu redor. Xico criou uma fábula para contar elementos reais de sua infância, como a proximidade da cultura pop em sua vida.

Nessa entrevista exclusiva ao Angústia Criadora, Xico Sá trata de vários temas relevantes para a compreensão do romance, como o contato com os primeiros livros e os Beatles:
“Todo mundo, seja encanador ou filósofo, está sempre reescrevendo mentalmente a sua vida”

 

No prólogo aparece a seguinte frase: “estiquei ao máximo a corda da verossimilhança”. Como surgiu a ideia de fazer uma “biografia ficcional”?  

Havia feito um conto, com o mesmo título de Big Jato, ainda nos anos 90. Ali já existia um esboço do Velho, talvez o personagem mais marcante do livro. As recentes voltas ao Cariri, o cenário da história, me instigaram a retomar o assunto. Assim como o Proust despertou com o bolinho Madeleine, precisei de muitas tapiocas com manteiga de garrafa.

“Se um homem não conta sua história, é um homem morto”. Realmente é importante, em determinado momento, revelar para o público, ainda que não totalmente de maneira real, a própria vida?

A um escritor nada é obrigatório. Não tem compromisso com a realidade, apenas com a imaginação. Talvez pela minha atividade como jornalista, me interesse tanto misturar as coisas, confundir a realidade com a ficção e vice-versa. No meu caso funcionou também como um acerto de contas, algo psicanalítico. De quebra, mostrei minha origem, de onde vem esse tipo de gente brasileira.

Se debruçar sobre a própria história pode ser perigoso em algum sentido? 

Nossa Senhora. Perigosíssimo. Ainda mais com a distância do tempo e as falhas de memória. Aí é que entra o ficcionista para ajeitar as coisas. Talvez esse seja o processo até mesmo para quem não escreve. Todo mundo, seja encanador ou filósofo, está sempre reescrevendo mentalmente a sua vida. É uma forma de melhorar nossa biografia, nossa trajetória.

Em outra passagem o narrador diz: “sertanejo forte é aquele que parte sabe de Deus para onde. Não o besta que fica com as chagas cobertas de moscas-varejeiras ou rola-bostas por uma vida tão devagar e arrastada”. É uma maneira de falar que o homem do sertão, para ser vitorioso, precisa sair da sua “terra” para encontrar o crescimento em outros lugares? 

Neste caso explorei uma provocação que Mário de Andrade fez ao Euclydes da Cunha e o seu “sertanejo antes de tudo um forte”. Mário, depois da sua viagem nordestina para o livro “Turista Acidental”, dizia em entrevistas que forte é o que parte das condições adversas e desumanas. Era apenas uma provocação literária. Big Jato se passa por volta de 1974, tempo de migração em massa, daí cabia bem a discussão. O Velho resiste fincado até as raízes do cabelo à sua terra; o personagem do tio viaja na imaginação; o menino, que seria meu personagem, vai embora de verdade.

– O personagem (pai) fala: “livro é para quem precisa inventar a vida que nunca teve”. De certa forma, é isso mesmo? A leitura como principal fonte de transporte para um universo idealizado? 
Perfeitamente. Os livros como viagem são um ponto forte no Big Jato. Antes de partir, o menino voa nas asas da biblioteca pública, onde uma tia o orienta. Ele viaja pelo Brasil com Graciliano Ramos e Luiz Gonzaga etc. Ele viaja ao estrangeiro com o “Fup” do californiano hippie e maluco Jim Dodge e com as letras dos Beatles -traduzidas mal e porcamente pelo tio.
A vida no sertão faz as pessoas fabularem o tempo inteiro, como acontece em Big Jato? Você foi uma criança assim? 

Sim, há uma leseira fabuladora, um ambiente de realidade fantásica, de não se saber se estamos vivendo ou sonhando.

O sertão sempre foi cenário para grandes filmes e livros? Qual o motivo principal para tal encantamento? O cenário peculiar; as pessoas, ou quase total desconhecimento dessa parte do Brasil?

É o lado mais fantástico e menos conhecido do país, mesmo depois de tantos filmes e livros. Há sempre uma abordagem muito folclórica, como costumam fazer os diretores e a mídia do sudeste. Mas há também lindas vinganças, como o sertão de Glauber Rocha, Ariano Suassuna e Graciliano. Sem falar do sertão mineiro de Guimarães Rosa.

Os capítulos do livro são curtos, quase como cortes de cena em um filme, qual o motivo de ter optado por esse recurso?

São curtos como se a memória não fosse capaz de alcançar toda a realidade do passado. Foi de propósito e a sensação ao escrever era mesmo essa, a de uma narrativa fragmentada, que vinha e desaparecia bruscamente.

Qual o maior choque ou surpresa que uma pessoa que nunca visitou o sertão pode ter?

O maior choque para quem nunca foi -ou não visita há muito tempo- é testemunhar a convivência de um certo tempo medieval com a absoluta modernidade high tech. Só o sertão guarda esse cenário contraditório. Em Big Jato, essa realidade aflora com beatos que se autoflagelam e as novidades do cinema americano.

Quando ainda estava no Crato, quais eram suas leituras?Já escrevia alguma coisa nessa época?

No Cariri, ainda adolescente, lia tudo que havia nas bibliotecas públicas. Filho de uma família humilde, de pequenos agricultores e comerciantes, não havia o hábito da leitura em casa. Nas bibliotecas, li os clássicos, os livros de aventura do Jack London, tudo de Graciliano Ramos e de Machado de Assis.

Big Jato será adaptado para o cinema por Claudio Assis. Já existe uma data para isso? Você vai participar da criação do roteiro?

Já temos duas versões do roteiro feitas pela Anna Francisco, com o meu auxílio e do Claudio Assis. Participo mais como consultor do que como roteirista. Deve ser filmado no segundo semestre deste ano novo.

 O fato do livro ser bastante imagético, foi o responsável para a ideia do filme? 

Inicialmente foi o enredo e o universo do livro que atraiu o Claudio Assis. Ao começar a construir o roteiro adaptado, aí sim o imagético acabou facilitando a escrever as cenas.

Até que ponto a cultura pop foi importante para sua formação, já que no romance as referências são claras, como os Beatles?

Muito importante. Por causa dessa mistura de um sertão que mistura Gonzagão e Beatles, como no livro.

 A sua chegada no Recife pode ser o que existe de mais real no livro? Como no deslumbramento final do protagonista chegando à cidade e vendo um mundo novo, completamente diferente do que estava acostumado, com todas as possibilidades de uma “cidade grande”? 

Sim, o alumbramento e o susto da chegada são realíssimos. O mundo novo a ser desbravado. O choque é tão grande que ele (o personagem central do livro) mergulha direto na sala escura do cine São Luiz.

A descoberta desse mundo (ou a busca por ele) pode ser a ideia que impulsiona o romance? 

O personagem do rapaz que chega ao Recife, repetindo a minha trajetória de vida, é o primeiro de uma família do sertão que faz uma ruptura, que vai embora, que dá um corte na sua trajetória. É uma ideia central sim no enredo e no existencialismo do Big Jato.

 

3 thoughts on “Uma fábula para voltar ao mundo real”
  1. que beleza. preso à lida não sabia do romance de xico. o conheci na antiga livro 7, fazendo poesia, quando ganhou do poeta alberto da cunha melo o simpático apelido de ‘poeta pão com ôvo, parece que residia na casa do estudante.
    Mas vi xico declamando num sarau, na própria livro 7, num tempo que o recife viva uma epidemia de conjuntivite, o hai kai: “trepamos. acredite. ela engravidou e eu peguei conjuntivite”.
    Da última vez que o encontrei foi numa edição da fliporto, na ocasião exercitava os versos mais conhecidos de Luiz Ramalho, cantados por Amelinha.

  2. Parabéns Ney, suas entrevistas continuam maravilhosas, sempre nos dando motivos para refletir, sobre este ou aquele assunto. Que o Angústiia criadora continue de vento em popa. Sempre te leio, mas nunca me preocupei em comentar. Abraços

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