Nesse artigo produzido exclusivamente para o Angústia Criadora, a escritora pernambucana, radicada em São Paulo, Adrienne Myrtes, fala um pouco do processo de criação dos livros que publicou até agora e comenta como foi escrever o novo romance: Uma história de amor para Maria Tereza e Guilherme, que vai ser lançado no Recife na próxima terça-feira (3).

 

Por Adrienne Myrtes*

É assim. Todo dia é um tal de pegar transporte e gastar oxigênio até chegar no trabalho e, durante as horas de trânsito mais poluição sonora e respiratória, alimentar a angústia de precisar escrever e ter tempo reduzido para isso e ficar ali, gastando minutos, horas, novinhas em caule, em um trajeto que leva a lugar algum porque para sempre no mesmo ponto: “Santo Amaro/Morumbi”. Ok, não vou reclamar desse trabalho, no final necessário para resolver o problema das contas que teimam em chegar mensalmente e ajudam a trazer do mercado o suficiente para me manter viva. Escrever é para os vivos, mortos ou não, então viva a vida dupla que esse trabalho cotidiano me impõe.

Quero mesmo é dizer dessa insanidade que criamos, dessa urgência sei lá de quê que nos faz correr de um canto a outro, sempre atrasados para tomar posse da própria vida, sempre em débito com o relógio e o calendário, coisa que em uma cidade do tamanho de São Paulo se potencializa e se materializa na forma de engarrafamentos. Trânsito. De pessoas, ideias, informações, sonhos, fumaça, peixes em aquários.

Moro em São Paulo faz doze anos e meus três livros são filhos dessa neurose que começa com meu chão recifense transportado para o concreto paulistano.

Todo livro tem sua história. Óbvio. Mas faço referência à história por trás da história, ao sangue que gerou o texto, ao plasma que aflora quando se corta a carne da palavra impressa. Circula nas veias das minhas narrativas a inquietação da falta de lugar, a consciência de morar em um “limbo” imposto não apenas pela migração mas principalmente pela condição humana que me coloca em trânsito constante por ideias e fenômenos. Ou ainda, nas palavras do “filósofo” Lulu Santos: “tudo muda o tempo todo no mundo”, inclusive nós. Nascemos muitas vezes e viajamos pelas várias pessoas que fomos e vamos sendo. Já reparou que a Terra não é perfeitamente esférica e sim um elipsóide achatado nos pólos?

Todo ficcionista reinventa a própria história. Será? Ou parte de recortes da memória para estampar novos universos? Tenho cá minhas dúvidas, aliás, dúvida é só o que possuo, me afeiçoo a elas. Cultivo-as. Cuido de uma criação de dúvidas junto com outra de pedras na varanda do meu apartamento. Tenho dificuldade com definições, gosto mais de ver nascer novas perguntas do que de encontrar respostas e aí, quando me pergunto o que existe na semente dos meus livros, a resposta que me dou é: uma pergunta, várias dúvidas.

Quando escrevi A mulher e o cavalo e outros contos o que me movia era uma pergunta acerca de relacionamentos; e penso que tudo em nossa vida pode ser reduzido a relacionamento, desde os humanos até a maneira como lidamos com a terra, as situações e mesmo a grana ou a falta dela. Beleza, essa é uma questão abstrata e pra virar uma discussão chata é um pulo, mas ela pode ser transformada em miudezas cotidianas com muita facilidade, e foi o que busquei, esmiuçar as “merdinhas” diárias que espalhamos enquanto procuramos a fórmula para equacionar os relacionamentos familiares e de casal; nada mais humano e bobo do que essas pequenas vilanias cometidas em nome do amor e seus derivados e a humanidade é o que mais me interessa porque me afeta no estômago.

Eis o mundo de fora foi um pulo no abismo, trata-se da dor e da maneira como cada pessoa lida com a própria. Quem não sofreu uma dor de dente que atire a primeira broca. Luis e Irene são contrapontos que se auxiliam sem se completar porque a completude não existe. Só a existência é plena em si, seu movimento ao longo do tempo é gerar perguntas, imaginar que existam respostas. Imaginação é tudo nessa caminhada, mesmo para acreditar no tempo é necessário alta dose de imaginação. Eis o mundo de fora é um círculo, uma pergunta que se desdobra em outra e mais outra e outra sem mais nem menos, os personagens se expõem e não pedem solução porque não acreditam que possa haver alguma. Luis pede delírio, tem febre, e Irene desconfia do sonho embora saiba que nos seguramos nas nuvens para caminhar.

Uma história de amor para Maria Tereza e Guilherme nasceu da pergunta que nos move na direção da fala, da escrita, e na fragilidade inerente a essa comunicação. Vale o parêntese de explicar minha crença em que grande parte dos problemas humanos ocorre por falha na comunicação, e quando a essa dificuldade primeira somamos a ilusão criada pela internet de uma ausência de fronteiras, chegamos ao redemoinho onde estamos metidos até os pelos, apelos, excessos de informações e escassez de aprofundamento. Quero nem levantar a questão, já batida, de que a internet é um problema, porque de fato vejo o risco na comunicação como intrínseco ao humano, e a vida virtual veio apenas acrescentar sal à receita. Tenho muitas outras perguntas a esse respeito mas tendo a pensar que mesmo esses excessos fazem parte da busca anterior, da necessidade primária de construir pontes na direção do outro, mesmo na intenção de, ao chegar lá, mandá-lo ao inferno. E quando essa necessidade é permeada pela individualização contemporânea, quando é cercada pelas paredes do quarto onde nos refugiamos a fim de falar com o mundo inteiro, ela se perde sem se dar conta. Pensa que encontrou seu meio ideal na virtualidade e, no entanto, se condenou à mutilação, afinal comunicação não é apenas fala ou escrita, ela se complementa com outros signos, como gestos, olhares ou mesmo tom de voz.

Uma história de amor para Maria Tereza e Guilherme brinca com essa angústia que cerca a comunicação, utilizando a história de um casal em crise; é uma novela contada em micronarrativas e desenhos. Não uso o termo “ilustrações” porque os desenhos não ilustram o texto, eles dialogam de igual pra igual com as palavras, os desenhos chegam mesmo a desconstruir o que está sendo contado em alguns momentos. Na novela, Maria Tereza vai embora para uma ilha, mas lança garrafas com mensagens ao mar na tentativa de chegar até Guilherme; e essas mensagens, esses capítulos, foram construídos de maneira a permitir mais de uma leitura (não faria sentido questionar a falha na comunicação sem explorar a ambiguidade das palavras) e “conversam” com os desenhos de maneira que fica sendo um livro para ler/ver, para se explorar a linguagem escrita e a linguagem visual com seus códigos particulares. Para quê existiriam códigos se os cofres não guardassem segredos?

Inicialmente era um projeto para ser publicado na internet, em meu site, mas houve o interesse de um amigo editor, Cláudio Brites, da Terracota, em transformá-lo em livro e eu fiquei muito feliz com o resultado; penso que a “história” encontrou seu veículo ideal.

Voltando ao transporte, continuo gastando muita vida dos meus dias no trânsito, nos transportes públicos, mas tenho aproveitado esse tempo para ler e escrever; inclusive, boa parte de minha próxima novela, que está em fase de revisão, foi escrita durante esses trajetos. Essa novela partiu de um convite de Marcelino Freire para escrever um relato de viagem dentro de uma coleção idealizada por ele, a: Que Viagem!, que está sendo publicada pela Edith, na qual dez escritores foram mandados a lugares “onde só eles poderiam ir”, segundo Marcelino; dessa coleção já saíram três títulos: Gisele Werneck foi para “Onde Judas perdeu as botas”, André Sala foi para “A casa do chapéu”, e Thiago Barbalho foi para “O fundo do poço”. Eu fui para “Onde o vento faz a curva” e voltarei de lá trazendo esse relato. Se em Uma história de amor para Maria Tereza e Guilherme a narradora é Maria Tereza, na próxima novela o narrador será Guilherme, e este livro funcionará feito uma continuação daquele. Coisa meio adolescente, não? Mas se o tempo também é ilusão?

Nós e nossa ilusão de continuidade, de permanência. Nem elas são sólidas, é o que aprendo com as pedras que crio em casa, imagine o resto. Imagine. Aqui voltamos ao ponto, à imaginação, e peço a todos: Imaginem. Recolham mais essa garrafa que acabo de lançar ao mar: Quem sabe, não é?

 

* Sobre a autora: Adrienne Myrtes nasceu no Recife/Pernambuco e vive em São Paulo desde 2001. É também artista plástica. Participou das antologias: Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século (Ateliê Editorial, 2004), 35 Segredos para Chegar a Lugar Nenhum – Literatura de Baixo-Ajuda (Bertrand Brasil, 2007) e Assim Você me Mata (Terracota, 2012), entre outras. Publicou: A Mulher e o Cavalo e Outros Contos (Alaúde e EraOdito, 2006), o romance Eis o Mundo de Fora (Ateliê Editorial, 2011) e a novela Uma história de amor para Maria Tereza e Guilherme (Terracota Editora, 2013). A autora teve ainda seu trabalho citado no livro Ficção em Pernambuco – Breve História, de Pedro Américo de Farias e Cristiano Aguiar (Grupo Páes, 2013), livro que trata da ficção pernambucana desde 1847, data do primeiro romance até 2011.

Adrienne Myrtes - foto boa

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