Por Ney Anderson
Quanto resta de alguém depois de um primeiro, e verdadeiro, amor? Difícil não fazer essa pergunta depois da leitura do romance O amor dos homens avulsos, de Victor Heringer, publicado pela Companhia das Letras. O livro trata do assunto mais abordado pela literatura mundial, em todas as épocas. Mas aqui o lugar comum passa longe, já que a história trata do amor entre dois garotos, numa época nefasta da história brasileira.
O livro começa com um informe meteorológico, para logo depois falar sobre como foi o improvável surgimento do mundo, com os subúrbios do Rio de Janeiro sendo os primeiros a aparecer, antes mesmo dos vulcões. Uma forma curiosa e inventiva de iniciar o romance num bairro carioca fictício chamado de Queím, um dos primeiros do mundo, segundo o narrador.
No enredo, Camilo é um adolescente que vive nesse lugar na década de 1970, e que tem a sua rotina abalada quando o seu pai, um médico ao serviço da ditadura militar, chega em casa trazendo um menino chamado Cosme. A chegada dele tira Camilo da zona de conforto, já que todas as atenções são voltadas para si, por conta da deficiência numa das pernas e da rejeição ao sol.
Automaticamente nasce o sentimento de ódio pelo recém chegado, mas que não dura muito, porque depois de alguns dias, durante um desentendimento, ele descobre o que realmente sente pelo outro. “Depois da bengalada que dei nele, meu ódio perdeu o nome e o formato de Cosmim. Aí, de um golpe, comecei a amá-lo”. E o amor de Camilo tem o cheiro de canela, conforme ele mesmo afirma. Essa nova realidade é rapidamente interrompida, por conta do assassinato Cosme pouco tempo depois.
O amor dos homens avulsos se passa em alguns tempos distintos, mas os dois principais são as décadas de 1970 e 2014, de onde é narrado por Camilo, que já está com 50 anos de idade. É interessante observar que propositalmente o romance é ambientado na primeira fase durante uma época de torturas e conflitos, mas que também (e por conta justamente disso) foi muito rica culturalmente, onde o comportamento servia de confronto contra o poder estabelecido.
No tempo atual que o romance é narrado o país atravessa uma turbulenta eleição presidencial. O livro, então, trafega entre esses dois tempos, que não por acaso têm a política como pano de fundo. Essa vai e volta no tempo serve como pano de fundo para as lembranças do amor que o protagonista sempre nutriu por Cosme, um sentimento avassalador para ele, mesmo quando essas imagens afetivas começar a ficar borrados pelo tempo. “Perdi a imagem exata de Cosmim, não consigo imaginar como ele seria velho. Enquanto era vivo, nunca pensei nisso”, diz.
O simulacro que vai sendo formado nos anos seguintes tem muito a ver com o primeiro contato entre duas pessoas que se amaram. Mesmo que a convivência não tenho perdurado fisicamente por vários anos, nunca se apagou da memória. É justamente sobre essa chama que permanece intocada muito tempo depois de acesa, mas que nunca se apaga completamente, que fala o romance de Victor Herenguer.
A chegada de um outro menino na vida do protagonista já adulto, no tempo presente, faz Camilo perceber que ele pode amar novamente, embora de outra forma. Essas memórias da infância/adolescência que duram para sempre é o grande trunfo do romance. A mudança de tempo narrativo, no entanto, não atrapalha em nada a leitura. Muito pelo contrário. É a substância suficiente para que a vontade de continuar permaneça no leitor.
Camilo é um personagem que observa bastante as coisas ao redor e que enxerga o mundo de uma maneira muito própria. É quase como se existisse uma voz onisciente que domina o narrador a todo instante. É sutil, mas de incrível densidade, que não força a barra para um erotismo gratuito. A proximidade entre os dois meninos no passado aconteceu naturalmente, sem grandes epifanias ou conflitos por conta da homossexualidade. É algo muito maior do que qualquer questão homo afetiva pudesse sugerir.
O texto é bastante reflexivo, com questões atuais, mesmo sem ser panfletário. Leitura, acima de tudo, prazerosa, flui com enorme facilidade, quase como uma conversa ao pé do ouvido. É quase impossível querer largar o romance antes da última página. Não é difícil imaginar esse livro sendo encenado. Com apenas um ator em cena, em monólogo, já que esse texto de extrema qualidade possui claramente essa possibilidade.
É bom dizer que Victor demonstrou um incrível fôlego e domínio para compor essa história. Não é fácil segurar qualquer narrativa, por tanto tempo, com uma única voz. Que vai mudando entre primeira e terceira pessoa sem que o leitor perceba essas variações constantes, porque apenas acontece tranquilamente, sem maiores atropelos.
O que mais chama atenção é a qualidade literária de Victor Heringer, que demonstra um grande poder ficcional, com vários recursos narrativos. Existe um alto grau de sofisticação. As descrições que o narrador-personagem faz, por exemplo, sobre o amor e o tesão que ele sente por Cosme é muito bem escrito e tocante, sem pieguices ou lugares comuns. Existe a descoberta do amor e também do próprio corpo, já que o protagonista sabe exatamente a função de cada músculo por conta da sua deficiência física
A descrição dos cenários, os diálogos curtos, e por muitas vezes interiores, existem para falar sobre ódio, amor e ternura. Dentro de uma linguagem que pode ser chamada de poderosa, porque convence desde o primeiro parágrafo. O protagonista muda da mesma forma que a cidade vai se transformando ano após ano. Não por acaso, ele é dono de uma loja de antiguidades. É um livro cheio dessas metáforas sutis relacionadas ao tempo, através de um processo criativo interessante.
O amor dos homens avulsos tem uma melancolia intrínseca, embora esse não seja o tom do texto. É recheado ainda por desenhos, imagens e interferência gráficas que complementam e ajudam a referenciar de forma singular as lembranças do narrador. É, portanto, cheio de significados, que podem passar despercebido numa primeira leitura.
Um dos mais prazeres que a literatura pode proporcionar é quando a história convence, é bem contada e leva o leitor para algum questionamento. É justamente o que acontece N’o amor dos homens avulsos. A maior força reside no narrador, que é bastante hábil em relembrar dos acontecimentos em tom que não é apenas nostálgico. Ele conseguiu forjar uma forma peculiar para tratar das lembranças sobre Cosme.
Por todas essas questões Victor Heringer, que já ganhou o Jabuti, está sendo comparado com Machado de Assis. Ele além de prosador é também poeta e ensaísta. O amor dos homens avulsos é um dos melhores lançamentos recentes no Brasil, de um autor que precisa ser acompanhado atentamente.
Sem dúvidas, uma grande perda. Os bons se vão cedo.