Em novo artigo para o projeto Eu escritor, Fernando Farias discorre sobre um aspecto interessante na criação literária. Você fala igual ao seu amigo? Não? É exatamente sobre a maneira de falar dos personagens que o autor analisa em seu penúltimo texto para o Angústia Criadora. Como ele mesmo diz,  o perfil físico é, em teoria, mais fácil de criar. Sabemos, por exemplo, que uma pessoa é desleixada pela maneira de se vestir; ou que um taxista conversa pouco com os passageiros, se atendo apenas ao trajeto. Mas como é a voz desse taxista? Grave, rouca? E a pessoa desleixada? Fala rápido ou tem a voz mansa? Segundo Fernando, não existe recomendação melhor para um iniciante. É preciso ler com atenção, entender que os personagens são diferentes e com falas distintas. Caso contrário corre-se o risco de criar não uma história de ficção, mas uma matéria de jornal.

Boa leitura”

Por Fernando Farias

A gente assiste a um filme com dezenas de personagens com seus nomes, suas características físicas, psicológicas e seu modo de falar. Conseguimos ver e ouvir todos os personagens individualmente. Já os recebemos criados e devidamente caracterizados.

Estranhamos, num livro, num conto ou romance, quando este cuidado não é tratado, é um desfile interminável de seres iguais, com falas iguais, sem qualquer tom que os diferencie. Muitas vezes o tom do narrador é o mesmo dos personagens, diferenciada apenas por um travessão ou o tal de – João disse e o – Maria respondeu.

Se sete bilhões de pessoas no mundo não são iguais, porque escrever como uma massa única? Na criação dos perfis dos personagens, não só suas roupas, cor,altura, ou qualquer outra descrição nada serve para separar os personagens, se eles falam todos do mesmo jeito, no mesmo ritmo, as mesmas pausas. O leitor lê isso como uma notícia de jornal.

Encontrar este tom da fala é o mais difícil e o mais cansativo quando se quer escrever. É o mais difícil também de se ensinar numa oficina literária. Teoricamente não há muitas regras ou técnicas. Pelo menos, eu desconheço. O tom de cada personagem quem define é o autor. E quanto mais personagens ele cria, mais e mais detalhes precisam ser criados para diferenciar. Como fala um turista, um motorista de ônibus, um professor de ginástica, uma criança, um velho aposentado?

É fácil saber o que é um perfil físico, o velhinho magro de pijama listrado numa cadeira de balanço. É fácil definir o perfil psicológico, ele passa o dia escutando noticiários policiais no rádio e diz que sempre sonhou em ser um policial para matar bandido.  É fácil definir o perfil social, um ex-contabilista que ganha um salario mínimo de aposentadoria, que mal dá para pagar a casinha em que vive sozinho na favela.

Mas como ele fala? É rouco, fala arrastado, fanho, usa gírias antigas, voz mansa, agressivo, rápido, negativo, irônico, bem humorado? Vamos usar períodos longos, curtos, sotaques, vírgulas, ponto e vírgulas? Como se escreve a fala de um velho ranzinza para mostrar que ele é um velho razinza sem dizer que ele é um velho ranzinza e deixar que o leitor perceba que ele é um velho razinza?

Creio que não se tem como dar um conselho a um jovem escritor que não seja apenas um. Escreva e depois leia em voz alta as frases e escute, escute sim, como sai o som da fala do velhinho em sua boca. – “Tire estes gatos de perto de mim. Querem me destruir? Querem que eles me mordam e comam minha comida? Estes gatos pretos são dos macumbeiros. Isso é um encosto do capeta em minha vida!” Agora releia a frase, talvez eu não tenha dado um bom exemplo, mas se você ler em voz alta notará que ela pode ser modificada até fixar no tom certo do velho razinza que você quer passar para o leitor. Um bom escritor nunca dirá que o velho é razinza, o escritor mostra na frase que ele é um razinza e o leitor percebe isso e chega a suas próprias conclusões.

O roteirista Doc Comparato, em seu livro Roteiro, de 1983, cita, por exemplo, o momento da criação em que temos que batizar o personagem. Que nome escolher? “Uma manicure, normalmente, poderia se chamar, por exemplo, Shirley. – mas se esta manicure é uma condessa refugiada ou falida, este nome, certamente, não servirá”. Os nomes dos personagens dependem da história e dos perfis. Eu, no meu caso, chamaria esta condessa falida de Dulce, Dolores ou madame Sofia.  Mas quem sabe, no seu tom, o jovem escritor escolha um melhor nome para esta condessa. Às vezes o que é “certo” para o escritor pode não ter a mesma sintonia para o leitor. Imagine quantas mulheres chamadas Shirley ficaram chateadas com o Doc Comparato quando ele escreveu isso. Na nossa cultura, uma pessoa chamada Shirley pode ser uma jovem suburbana que vive como cabeleira, mas não sei se isso corre no Acre ou no Rio Grande do Sul.

No meu processo criativo, observo que um velhinho razinza, pra mim, não pode ter nome pequeno, não pode se chamar Biu ou Tonho. Nada de redução. Ele chama-se Filomeno ou Pafúncio. Velhos na literatura têm nomes polissílabos. Eu acho melhor.

Observo, em muitos jovens com quem faço oficinas literárias, sempre a tendência de colocar nome em inglês nos personagens ricos, Robert, Waren, Larry, Jonh, Michel. Talvez por influência dos seriados americanos, sempre usam nomes como Pedro, Severina e Maria nos personagens pobres.

Escolher os nomes ou colocar nos diálogos o tom dos personagens é sempre o mais difícil e arriscado numa história. Na minha arrogante opinião de leitor, o pior é cair na tentação de escrever a coisa mais ridícula, que é a fala dos personagens com suas gírias sociais.

Um malandro do morro que fala o tempo todo – Aêê, toque aqui meu irmão, se liga, que é que tá pegando na parada? Tá na mente? Kadê as minas? – ou então o mais chato de todos: a voz dos nordestinos escrita com o sotaque de novelas da Rede Globo. – “Meu bichim, tem um gatim pra tu dá um leitim pra ele. Prumode aluviar a fome do danado”. Evite isso, por Nossa Senhora da Boa literatura. É um insuportável ruído que a mente e os olhos do leitor não suportam. Já tentei ler poemas e contos em pernambucanês que são horríveis. Principalmente porque quem faz a opção de escrever assim, sempre esquece que a história tem que ter conteúdo.

A menos que seu nome seja João, do João Guimarães Rosa, procure escrever sem estes sotaques e chiados. O segredo é aproximar a fala corretamente pronunciada com elementos danarração. Uma velha senhora sertaneja pode muito bem dizer“Tem água fria na quartinha e no pote lá no quintal. Tome este leite tirado agorinha do peito da vaca. Vá dar o leite para a ninhada. Apague o candeeiro e vá dormir na rede menino”. É apenas um exemplo de aproximação da fala com a realidade sertaneja, sem bem que esses elementos que citei acima só servem para histórias antigas. O sertão agora tem “gelágua” e leite em caixinha, em casa.

Por sinal, o roteirista Doc Comparato, que é carioca, ao escrever Lampião e Maria Bonita para a televisão, deixou a coisa do sotaque por conta da direção e dos atores da série.

Insisto. Um escritor quando termina de escrever faz correções ortográficas, gramaticais, de estilo, mas também ler em voz alta, o texto, repetidas vezes para escutar bem a voz do personagem.

Um exemplo prático disso eu presenciei há poucos dias, quando a escritora Graça Ferreira de Paula escreveu uma história infantil. Observou no texto que as vozes dos animais na floresta eram as mesmas, no mesmo tom até do narrador. A Arara Azul, por exemplo, falava “Dona Cobra, olhe a chuva” e a cobra respondia “que pena, vou ficar molhada”.  Graça Ferreira quando leu em voz para um grupo crianças observou que, inconscientemente, ela lia e pronunciava de forma diferente do que estava escrito por ela mesma. Mudou o diálogo, que ficou assim: “Dona Cobra, Dona Cobra, a Chuva, olha a chuva” e a cobra respondeu “que boooomm. Eu vou rastejar na terra molhadiiiiinha, isso é boooomm faz cosquinhas na minha barriga”.

É que as Araras Azuis falam diferente das cobras. Todas as crianças sabem disso.

Sabe o que é isso? Isso é arte.

One thought on “A voz da Arara Azul”

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