Por Ney Anderson

Ana Paula Maia é uma das principais escritoras do país que estreou na virada dos anos 2000, com o livro O habitante das falhas subterrâneas (7 Letras), dando início a um tipo de literatura que sempre retratou homens rudes, realizando trabalhos que ninguém parece notar, mas que são imprescindíveis. A escritora desde o início voltou o seu olhar para um microcosmo muito peculiar, através de personagens deslocados, em cenários longe dos centros urbanos, normalmente bastante utilizados na prosa contemporânea brasileira.

O romance mais recente, Enterre seus mortos, o primeiro pela Companhia das Letrasreforça o objetivo da autora em expandir o seu universo literário, trazendo de volta o personagem Edgar Wilson, emblemático dentro da sua produção. Neste novo trabalho, dividido em duas partes (Os animais e Os mortos), Edgar trabalha para uma empresa como removedor de animais mortos nas estradas, recolhendo diariamente bichos atropelados e levando-os para ser triturados num moedor.

A rotina é abalada quando ele encontra dois corpos humanos na mata que circunda a região. Primeiro o cadáver de uma mulher, depois o de um homem. Ambos assassinados. Ao saber que a polícia não pode fazer nada no momento, porque não tem como recolher os corpos, Edgar decide, junto com o colega de trabalho Tomás (um padre excomungado), levar os cadáveres para o IML mais próximo, mas a missão não acontece conforme o esperado. Eles simplesmente não conseguem deixar os corpos nos institutos de medicina que encontram no caminho, por conta da superlotação dos espaços.

Nesse pequeno roadie movie eles se deparam com figuras inescrupulosas, médicos mafiosos, que querem comprar os corpos para fins diversos. Acompanhamos a saga dos dois para dar um fim digno aos mortos, como se a alma dos que já partiram precisassem desse final de ciclo para, enfim, descansar. Maia mostra o significado da degradação da vida, tanto dos animais quanto dos homens, quando o corpo se torna inevitavelmente um estorvo. O clima de luto e morte paira neste livro.

No trajeto de trabalho também existem algumas pedreiras de calcário, que são explodidas três vezes ao dia, liberando gases tóxicos e contaminando o ar, prejudicando a saúde das poucas pessoas que moram lá. Não é por acaso que um padre excomungado esteja vivendo justamente neste local, pagando os próprios pecados, mas dando a extrema unção aos que estão perto de partir e o sacramento dos mortos para os que já faleceram. Ali eles estão próximo do céu e também do inferno. O aspecto religioso neste livro, inclusive, é presente de uma forma transviada, com alguns pastores andarilhos tentando conquistar as almas que restam naquele local, com promessas vazias de significado, dando banho de purificação nos que aceitam a renovação do ser.

Edgar, por exemplo, é um homem de fé, mas não da forma tradicional. Ele é religioso à sua maneira. Sobretudo naquele local ermo, que para ele parece ser o fim do mundo. Seco, rígido, econômico nos movimentos e nas falas, prefere observar a ser observado. Wilson foi sendo construído aos poucos nos outros livros, chegando até aqui de uma forma maior, totalmente introspectivo, mas ainda longe de encerrar a sua bruta saga.

“Depois de caminhar por alguns metros, Edgar Wilson percebe ao longe a carcaça de um animal. Segue pela estrada de terra batida, que fica deserta a maior parte do tempo e é usada como atalho pelos motoristas que conhecem bem as imediações. Edgar fora atraído para esse trecho por causa de uma revoada de abutres. Assim como a podridão os atrai, os que se alimentam dela atraem Edgar. Tanto as aves carniceiras quanto ele se valem dos próprios sentidos para encontrar os mortos, e ambas as espécies sobrevivem desses restos não reclamados”.

O romance (ou novela) é bastante inquietante, com poucos personagens convivendo num ambiente afastado, onde não resta mais nada, somente eles próprios, convivendo no limite possível da sanidade. O protagonista está ainda mais sombrio e reflexivo nesta trama. Chegou até ali depois de ter passado por ambientes que reforçaram o seu caráter transviado. Da mesma forma que ele dá um fim aos corpos que encontra pelo caminho, ele também parece alguém descartável. Apenas mais um dentro de um contexto maior de miserabilidade. Edgar é alguém que executa tarefas. As piores possíveis. E continua seguindo a trajetória que lhe é possível.

A lupa da prosadora carioca é sempre focada um tom abaixo do mainstream literário atual, personificando figuras praticamente invisíveis, excluídas, que estão vagando no limbo, sendo levadas pelo destino. Como Edgar Wilson, um homem condenado pela vida, fazendo o serviço que apenas gente como ele é capaz de realizar.

Enterre seus mortos é ambientado nas rodovias desertas no interior do país, sem geografia precisa. O livro carrega na violência crua, no realismo que salta aos olhos, numa forma próxima dos romances policiais, tratando do fim da vida e da desolação em que se encontram as figuras incomuns presentes nesta história.

A prosa da autora se configura numa precisão estilística através dos gestos contidos dos personagens, nas falas pausadas e no silêncio. O enredo deste novo livro mais esconde do que revela, evocando imagens cruéis, na atmosfera quase fantasmagórica criada por Maia. Enterre seus mortos é feito com uma técnica que não deixa nada sobrar, nem faltar. Tudo é direto ao ponto. Partindo de uma causa para atingir um efeito agudo de desconforto, através de um minimalismo potente que reforça a objetividade da sua obra, com discrições repugnantes dos animais mortos sendo raspados do asfalto, saindo da vida da pior forma possível, como os habitantes daquela localidade.

Ana Paula Maia vai criando esses microcosmos que acabam se fundindo em um único e poderoso texto de ficção, que parece apenas retalhos costurados da espécie humana vivendo brutalizada nas sombras. Com Enterre seus mortos ela expande o seu rico universo de homens marginalizados e entregues à própria sorte.

* Resenha publicada originalmente no Caderno Pensar, do Jornal Estado de Minas, no dia 06 de julho de 2018. 

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