Crédito: Roseli Vaz

Por Ney Anderson

Em homenagem aos 10 anos do Angústia Criadora, escritores de todo o país falaram com exclusividade ao site sobre literatura, processo criativo, a importância da escrita ficcional para o mundo e para a vida e diversos outros assuntos. Leia a entrevista a seguir com o convidado de hoje. Divulgue nas suas redes sociais. Acompanhe o Angústia Criadora também no Instagram: @angustiacriadora e Facebook: https://facebook.com/AngustiaCriadora

 

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André de Leones (Goiânia, 1980) é autor dos romances Eufrates (José Olympio, 2018), Abaixo do Paraíso (Rocco, 2016), Terra de Casas Vazias (Rocco, 2013) e Dentes Negros (Rocco, 2011), entre outros. Para mais informações, acesse: andredeleones.com.br.

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O que é literatura?

Literatura é uma forma de abertura para o mundo, um modo de dispor-se nele, por si e para o outro. Na medida em que se dá tal abertura, algo é compartilhado ali, algo que, com sorte, diz respeito a todos os envolvidos e ao próprio mundo. É difícil deslindar um discurso sobre (ou a partir de) outro discurso, ou ainda sobre (ou a partir de) uma forma discursiva específica, daqui para lá e de volta, mas essa tentativa não deixa de ser interessante também porque pode se colocar assim, literariamente. Logo, a melhor maneira de dizer “o que é isto” é paradoxalmente se disfarçar para se mostrar como tal: literatura é a morte de Pátroclo, ou as deambulações de Bloom, ou as falsificações de Wyatt, ou aquele burrinho pedrês, ou o jantar de Tito Andrônico etc.

O que é escrever ficção?

Escrever ficção é uma espécie de desvio: falsear a partir do real para encontrar alguma verdade bem precária, mas toda nossa, acerca de algo (um nada) daquele mesmo real. É um dispor-se para o mundo esperando que, em algum momento, o mundo se disponha para nós, instituindo uma conversa cheia de lacunas e interrupções, mas sempre muito vívida.

Vocação, talento, carma, destino…..o escritor é um predestinado a carregar adjetivos que tentam justificar o ofício?

Não vejo necessidade de justificar o ofício. Talvez por isso, não costumo prestar muita atenção nesse tipo de adjetivação. São termos vazios ou esvaziados, sempre prontos para serem utilizados por leitores e escritores que não estão fazendo o que deveriam, isto é, ler e escrever.

Qual o melhor aliado do escritor?

Eu diria que existem dois aliados no momento da criação e outro depois que a obra sai para o mundo. No momento da criação, os aliados são a curiosidade e a disciplina. Depois, creio (espero) que seja o leitor.

E qual o maior inimigo?

A preocupação excessiva com questões alheias à escrita e, eu diria, à própria literatura. E os boletos. Os boletos são inimigos terríveis, sanguinários, impiedosos.

Crédito: Roseli Vaz

Escrever é um ato político? Por qual motivo?

Escrever é uma atividade que pode ter conotações políticas ou ser encarada como tal, a depender dos humores e horrores do tempo. Em geral, é a recepção da obra que tende a ser política ou politizada, para o bem ou para o mal, e conforme o gosto, os posicionamentos e/ou a miopia dos fregueses. Quando, por outro lado, a coisa é assim encarada a priori, podem ocorrer problemas variados, desde a incompreensão do ofício em si (e das suas possibilidades estéticas) até o aceno, inadvertido ou não, para os espantalhos stalinistas que assombram os espíritos alquebrados e desprovidos de imaginação.

Quais os aspectos que você leva em conta no momento que começa a escrever?

Procuro me situar da melhor maneira possível no planejamento que tracei, embora esteja sempre aberto a quaisquer mudanças de curso e às possibilidades que por ventura surgirem no decorrer do processo. Escrever é reescrever, e ter isso em mente desde o início evita tropeços, falsos começos ou recomeços, distrações e frustrações.

A literatura existe para entendermos o começo, o meio ou fim?

A literatura existe para entendermos o trajeto, o itinerário, o processo, e para enxergarmos melhor a paisagem. Os inícios são sempre inalcançáveis, e o fim só pode ser testemunhado pelo outro — aquele que fica (ao menos por um tempo, pois logo também chegará a vez dele).

Se escreve para buscar respostas ou para estimular as dúvidas?

Nem uma coisa, nem outra. As dúvidas são um traço meio instintivo, próprio da espécie, e só os tolos e os fracos não as abraçam de bom grado; as respostas são quase sempre imposturas, delírios ou atos de desespero, por melhores que sejam. Aquele que lê buscando respostas só não é pior do que aquele que escreve apresentando respostas de maneira assertiva, artificiosa, peremptória. Não é preciso estimular as dúvidas, pois elas circulam ao nosso redor como abelhas; é preciso não ser alérgico a elas, e gostar de mel. Gostar de mel é imprescindível.

Criar é tatear no escuro das incertezas?

Viver é tatear no escuro das incertezas. Criar é acender uma fogueira e torcer para que não me atirem nela, ao mesmo tempo em que evito — mais por coerência que por compaixão — atirar outrem nas chamas (mas nem sempre é possível, sabe como é).

Cite um trecho de alguma obra que te marcou profundamente.

Cito: “Quando a sombra do caixilho apareceu na cortina era entre sete e oito horas, e portanto eu estava no tempo de novo, ouvindo o relógio. Era o relógio do meu avô, e quando o ganhei de meu pai ele disse Estou lhe dando o mausoléu de toda esperança e todo desejo; é extremamente provável que você o use para lograr o reducto absurdum de toda experiência humana, que será tão pouco adaptado às suas necessidades individuais quanto foi às dele. Dou-lhe este relógio não para que você se lembre do tempo, mas para que você possa esquecê-lo por um momento de vez em quando e não gaste todo seu fôlego tentando conquistá-lo. Porque jamais se ganha batalha alguma, ele disse. Nenhuma batalha sequer é lutada. O campo revela ao homem apenas sua própria loucura e desespero, e a vitória é uma ilusão de filósofos e néscios.” – William Faulkner, em O Som e a Fúria (trad.: Paulo Henriques Britto, ed. Cosac Naify). Acho que essa obra-prima foi relançada por outra editora.

É possível recriar o silêncio com as palavras? Como?

Sim, é possível, não com as palavras, mas pela sua ausência. Por exemplo:

 

 

(Mas autores como Adriana Lisboa e Yasunari Kawabata chegam perto de recriar o silêncio com as palavras. Como eles fazem isso? Não faço ideia. Canalhas.)

Você acredita que qualquer pessoa pode escrever uma história? Mas, então, o que vai fazer dela escritora, de fato?

Qualquer pessoa pode escrever uma história, mas nem todo mundo tem o conhecimento técnico para fazê-lo literariamente. Tal conhecimento se adquire por meio do estudo e da prática incessantes. Não há outro caminho, e não existem atalhos. Estudo, trabalho, estudo. Por outro lado, em se tratando de escritores, há muitos que dominam a técnica, mas escrevem livros apenas corretos (na melhor das hipóteses), pois carecem de talento. As pessoas que se inscrevem em cursos e oficinas de criação literária devem ter isso em mente. O conhecimento histórico, técnico e estético acerca da literatura pode ser ensinado e aprendido; o talento, não.

É preciso saber olhar o mundo com os olhos da ficção? O mundo fica melhor ou pior a partir dessa observação?

É preciso olhar para o mundo com as lentes da galhofa e da melancolia. O mundo não fica melhor ou pior, mas aquele que olha para ele dessa forma certamente parece um pouquinho mais inteligente — o que, nos dias de hoje, vamos concordar, não é pouco.

Todo texto ficcional, mesmo os mais extensos, acaba sendo apenas um trecho ou fragmento da história geral? Digo, a ficção lança o seu olhar para as esquinas das situações, sendo praticamente impossível se ter uma noção do todo?

A “noção do todo”, de fato, é algo inalcançável, literária e/ou filosoficamente. Não damos conta da nossa própria cabeça, quanto mais do quarteirão em que vivemos. A rigor, até mesmo a ideia de uma “história geral” me parece uma impossibilidade nocional, algo inabarcável. Toda história é parcial, e parcial em todas as acepções possíveis do termo.

Nesse sentido, uma história nunca tem início, meio e fim?

Creio que não. As minhas histórias, pelo menos, não têm — exceto de maneira forçosa, conforme o recorte escolhido. Mesmo um romance que se pretenda assim “fechadinho”, sendo um bom romance, deixa um “resto”, algo que escapa, que não é inteiramente referido, explicado, contido.

Você escolhe os seus temas ou é escolhido por eles?

Eu escolho os meus temas, mas a abordagem é até certo ponto determinada pela minha genealogia, por assim dizer. Em outras palavras, como autor, sou fruto sobretudo das minhas vivências, é claro, mas também das minhas leituras, dos autores que chamaram e chamam a minha atenção, e aos quais sempre retorno com interesse renovado, sem falar das descobertas que vou fazendo dia após dia — a genealogia nunca está completa, e é sempre um prazer descobrir e incluir novos parentes (inclusive contra a vontade deles).

É necessário buscar formas de expressão cada vez menos sujeitas ao cânone, desafiando a língua, tornando-a mais “suja”, para se aproximar cada vez mais da verossimilhança que a história pede? Ou seja, escrever cada vez “pior”, longe da superficialidade de escrever “certinho”, como disse Cortázar, talvez na tentativa de fugir da armadilha do estilo único?

Creio que essas novas formas de expressão surgem naturalmente e sempre estiveram por aí, bem como a enorme variedade estilística. É possível identificar essa “sujeira” em Petrônio e em James Ellroy, em Rabelais e em Ruth Rendell, em Dostoiévski e em Hilda Hilst, em Menipo e em William Gaddis, em Homero e em Cormac McCarthy, isto é, em autores separados por milênios e muito díspares entre si. Por outro lado, é preciso tomar cuidado com os preconceitos e suas inversões: de certa forma, Flaubert e Thomas Mann talvez escrevam “certinho”, mas obras como “A Educação Sentimental” e “A Montanha Mágica” são, cada qual a seu modo, de uma violência e de uma sujidade muito especiais, que não chamam a atenção para si, mas para nós. Quanto a “desafiar a língua”, acho que vai demorar um bocado para alguém sequer se aproximar do que fez Joyce no estupendo e vivíssimo Finnegans Wake, esse rio no qual todos deveriam entrar e se deixar levar pela correnteza.

Quando é que um escritor atinge a maturidade?

Quando deixa de se preocupar com o que os outros vão pensar e simplesmente escreve o que bem entende, da melhor forma que conseguir. Há quem tenha isso dentro de si desde sempre (ou finge ter), e há quem desenvolva esse superpoder com o tempo.

O leitor torna-se cúmplice do escritor em qual momento?

No momento em que começa a ler o livro. O ato de iniciar a leitura já é uma espécie de rendição, é uma abertura para o que ali está, um tornar-se disponível. Mesmo que o leitor abandone o livro ou desgoste dele, há aquela rendição inicial. Pelo menos isso, não?

Apenas um livro para livrá-lo do fim do mundo em uma espaçonave. O seu livro inesquecível. Qual seria?

No momento, The Tunnel, de William H. Gass. Se me fizer essa mesma pergunta na semana que vem, é provável que seja outro livro. Todo leitor é promíscuo e volúvel, especialmente diante do fim do mundo.

Qual a sua angústia criadora?

A primeira versão de um romance. Ela já constitui a concretização do plano inicial, mas ainda está muito longe do que deverá ou deveria ser o livro, isto é, do objetivo final e elusivo. Não chego a me angustiar, na verdade (a não ser que esteja muito aquém do que eu esperava, mesmo para um primeiro rascunho), mas é sempre bom saber que o livro não se escreverá sozinho, e que precisará da minha total atenção, da minha inteira disposição, de tudo o que eu puder oferecer naquele momento e nos meses seguintes. Eu me sinto quase útil nesses momentos, e quase completo, também. E feliz.

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