Foto: Selmy Yassuda
Foto: Selmy Yassuda

Por Ney Anderson

Começar o livro pela morte de um personagem foi uma ideia interessante que o diretor de cinema Domingos Oliveira teve ao escrever seu primeiro romance: Antônio, o primeiro dia da morte de um homem (editora Record). O personagem principal é professor universitário, roteirista e tem um romance que considera um fracasso, mesmo assim não desiste de vê-lo publicado. O texto começa quando Antônio recebe a notícia do falecimento do amigo Eduardo. O romance então passeia pelo tom memorialista, com discrições perfeitas do dia a dia carioca do protagonista e de ocasiões do passado e do presente, com o falecido amigo de pano de fundo.

O livro é engraçado e triste, que nos revela um personagem oscilando entre a alegria e a dor. Ele não pensa muito sobre as decisões que toma, age quase sempre por impulso, e por isso mesmo tem uma vida muito rica, ainda que fora de objetivos. Antônio se separa depois de muitos anos de casamento com Blue, que também é escritora, entra num perigoso triângulo amoroso e ainda tenta publicar o único romance que escreveu. É impossível não fazer um paralelo destra obra com a filmografia de Domingos, com dezesseis filmes no currículo e outras dezenas de trabalhos audiovisuais e no teatro, que sempre flerta com a ironia, com diálogos fortes e cenários pontuais. O autor utilizou alguns recursos para contar a história desse personagem incomum.

O protagonista Antônio conversa com o leitor algumas vezes, misturando este artifício literário com uma falsa terceira pessoa, que muda de tom em várias passagens do livro, se aproximando e distanciando das cenas, indo e vindo no tempo, como uma câmera que mostra a história por ângulos diferentes, com pequenos flashbacks. Algo já utilizado por Machado de Assis, por exemplo. Mesmo assim, o autor conseguiu dar frescor ao recurso, porque existe andamento, um lirismo que aproxima o leitor dos caminhos errantes de Antônio e das escolhas que ele faz. Existe uma grande mistura narrativa, com monólogos e solilóquios, para mostrar uma certa confusão que o protagonista sente. “Passo por um átimo pelo espelho do bar. Sou um homem de 62 anos, maduro, charmoso, mas que não lembra o Bogart. Mas chega, Antônio! Em nome da Santa Luz, é preciso que eu refreie meus pensamentos. Sou uma matraca telepática. Um homem de bem deve pensar pouco. Se possível, não pensar”.

Sem falar nas aparições de Eduardo, o morto, que interfere na vida de Antônio, dando opiniões em cada novo passo do amigo. É interessante esse artifício, pois não nunca é totalmente explícito essas aparições, criadas de forma sofisticada. Não se sabe se as situações são reais ou fruto da memória confusa do narrador. “Eduardo apareceu e, sentado na cadeira, em frente ao sofá, aplaudia o casal, repetindo em vários tons que a vida é maravilhosa mas não vale a pena”.  O romance vai e volta no tempo, mostrando os preparativos e sensações que Antônio sente com a morte do grande amigo. Tudo isso acontece em apenas um dia, dois no máximo. A partir deste momento, quando ele recebe a notícia da morte de Eduardo, vai repassando a própria vida, na metáfora sobre a existência, com muitas digressões e fatos importantes da vida própria vida. Por isso que o curioso título se explica, pois o narrador analisa como é o primeiro dia da morte de um homem através da constatação que nada mais importa para quem partiu, apenas para os que ficam.

Ainda existem críticas pontuais ao mercado literário, mesmo sem oferecer algo novo para quem conhece minimamente da área. “Sucesso por aqui significa uma única edição de três mil exemplares    . E ainda. “O pessoal da Secretaria de Cultura não queria soltar a verba. Acha muito alguém ganhar isso só porque escreveu um livro, mesmo que tenha escrito a Odisseia. Ninguém detesta mais a cultura que o pessoal da Secretaria de Cultura, ou melhor, não detesta a cultura. Você não pode detestar uma coisa que você não sabe o que é”. E também ao cinema. “O filme mais elogiado da programação deve ser o mais chato. Meus amigos cineastas pernambucanos só fazem sexo explícito nos filmes, ali pra valer. Senão um fica mal com o outro. O que que tem? Acham que o ridículo é não fazer. Depois dos chupões da Globo é não fazer”.

O livro tem muito de literatura, do cinema, do teatro, das mulheres que passam pela vida de Antônio, sexo, paixão,amizades, e as frustações e alegrias dele. Ou seja, tem muito daquilo que faz da arte algo palpável, e que se aproxima do leitor. Porque as situações ali presente podem ser a de qualquer pessoa. Antônio: o primeiro dia da morte de um homem é uma loucura verborrágica tão bem escrita que não queremos que o romance acabe. Uma boa parte da obra é centrada nas dificuldades do Antônio escritor que não consegue terminar o livro, e que perde o trabalho de três meses por conta de um defeito no computador. O curioso é que o livro perdido é o mesmo que o leitor tem em mãos. Eram “setenta páginas irreproduzíveis, escritas na obsessão de quem não domina uma linguagem. Não era bom mesmo aquilo que estava perdido”. Mas o autor brinca com a metaficção de uma maneira realmente perspicaz.

“Todo escritor diz que não é ele quem escreve, são os personagens. Que os personagens têm vida própria, que quando as histórias são boas são escritas por eles. Atesto que é verdade. Antônio, Nádia, Manuela, Seu Cavalcanti, Blue, Esteban e outros que ainda não tinham rosto nem nome falaram. Eu não sabia que cabiam tantos pigmeus no meu estômago. Um mês depois, vencido e exausto, recomecei a escrever o mesmo romance”. A história desse livro dentro do livro é sobre Seu Cavalcanti, o jornaleiro que ele fez amizade por trabalhar em frente ao prédio da editora onde o livro foi publicado. Mesmo assim, o narrador resolve brincar mais uma vez com a metaficção. “Esse texto, que talvez esteja sendo escrito por Antônio, talvez pelo autor de Antônio, demanda explicação”. Uma voz flutuante, que trafega entre a onisciência e a primeira pessoa, muito bem desenvolvida habita todo o livro. O livro é um misto da vida de Antônio, com a do falecido amigo Eduardo. As personagens femininas têm uma importância fundamental na composição do romance, já que o narrador-personagem é um bon vivant.

O narrador tenta responder qual, ou como, seria o primeiro dia da morte de um homem. A partir de que momento isso pode acontecer. Essa é a grande pergunta intrínseca de todo o livro. O amigo, como lembra Antônio, foi um escritor fracassado, tal como ele mesmo segue essa mesma trajetória. Eduardo escreveu um livro sobre a mãe, uma “porra-louquice sem estilo”, diz o narrador. A arte, portanto, é fundamental para a compreensão da obra e das possíveis respostas. “Qual o primeiro dia da morte de um homem? Que alvorada maldita será esta a partir da qual está decretada a minha morte? Foi ali, na desistência do livro, o primeiro dia da morte de Eduardo”.

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