Por Ney Anderson

Uma ficção ambientada em Pernambuco dos anos oitenta não seria algo incomum, mas se torna ainda mais interessante quando é escrito por alguém de outro país. É curioso perceber como o francês Hubert Tézenas escreveu o romance o ouro de Quipapá, lançado pela editora Vestígio (do grupo Autêntica), tendo Recife e a zona da Mata Sul como cenários. No livro conhecemos Alberico Cruz, um pacato corretor de imóveis, que presencia um crime e tem a vida revirada por conta disso. É preso, acusado injustamente do assassinato de Teotônio de Jesus Policarpo, um sindicalista que tenta se esconder, no Recife, de pessoas poderosas da zona canavieira. Alberico consegue fugir e tenta encontrar os verdadeiros culpados pela morte do Teotônio.

Ele não sabe que o crime está ligado aos donos de engenho, que comandam o interior do estado. Sua prisão, na verdade, serviu como um álibi perfeito para os verdadeiros assassinos. Alberico estava na hora errada, no lugar errado, no momento que negociava um contrato de aluguel para Teotônio de Jesus, apenas fazendo o seu trabalho de corretor. Esse enredo pode parecer se tratar de um romance policial, mas não é só isso, mesmo que as técnicas ligadas ao gênero estejam presentes no texto de Tézenas. A necessidade deste recurso narrativo foi justamente para mostrar a vida dos cortadores de cana.  A crítica social é muito forte nesse Ouro de Quipapá. De um lado estão os donos de engenho, do outro, as pessoas humildes que trabalham na lavoura como escravos. É assim que Alberico Cruz compreende toda a situação na qual está envolvido, na tentativa de provar sua inocência. Tudo acontece de maneira muito rápida, com vários momentos de ação, onde o protagonista se vê encurralado em alguns pontos. Ele é uma espécie de anti-herói, que tenta acabar com pessoas corruptas e bastante poderosas.

No calor do outono nordestino, Alderico vai atrás dos verdadeiros culpados e descobre a vida sofrível das pessoas daquela região. Mas as críticas que existem no romance não são didáticas, elas apenas aparecem e mostram uma realidade cruel vivida pelos trabalhadores do campo, sem condições dignas de trabalho e muitas outras injustiças. Essa foi uma grande sacada de Tézenas, não escrever um livro como um simples panfleto de crítica social, mas fazendo da arte um instrumento importante para mostrar o que acontece de fato, até hoje, e sem afetações.

Existe outra história paralela no romance. Kelbian, filho de um desses poderosos, descobre uma velha mina, que possivelmente pode estar recheada com bastante o ouro. Ele chama um geólogo para analisar o local e recebe a informação que realmente naquelas terras existe ouro. Para a notícia não se espalhar, ele contrata, junto com o meio-irmão Tiago, vários homens para cavar o terreno, mas nenhum deles pode sair da mina, ficam presos após o trabalho exaustivo, em regime escravo. Essa história também vai aparecendo após uma investigação que Alberico Cruz, junto com um jornalista do Recife, começa a fazer.

O romance tem vários pontos positivos. Além de prender a atenção do leitor, utilizando de reviravoltas, Tézenas conseguiu escrever uma ficção muito próxima da realidade. As paisagens e cenários são descritos com elegância, e os diálogos entrecruzados,  mostram um autor que domina o ofício. Esse conhecimento não é à toa, o próprio escritor passou mais de dez anos em Pernambuco e percorreu várias cidades do interior do estado. A prosa do francês flui sem complicações. Existe leveza no texto, mesmo a partir de um tema tão duro, bastante realista e humano.

Sem se aprofundar muito na psicologia dos personagens, Tézenas consegue criar empatia no leitor logo nas primeiras páginas, por contada agilidade da trama. Os capítulos são curtos, com pontos de vista diferentes em alguns momentos. É incrível quando no começo do romance, o protagonista, da janela do ônibus, que sai do populoso bairro do Ibura, observa todos os cenários de uma forma original, mostrando um Recife seco e cruel. As pontes e os rios, claro, estão nessa visão de Alberico sobre o centro do Recife, mas de uma forma original, longe dos clichês. É uma cidade degradada, povoada por personagens marginais.

Com todos esses ingredientes o suspense vai aumentando na medida que o final se aproxima. O romance L’or de Quipapá (título original) é uma história que mostra os desmandos de pessoas poderosas, no interior de uma cidade do nordeste brasileiro. É tão absurdo, ainda que ambientado em décadas passadas, que não houve problema ser lançado primeiramente na França, pela Les Éditions L’Ecailler. Justamente por tratar de algo universal: o sofrimento humano. Para escrever o livro, Hubert Tézenas primeiro teve que viver por vários anos em Pernambuco, antes mesmo de ser escritor, apenas fazendo traduções esporádicas para lhe garantir a sobrevivência. De qualquer forma, todo o período que passou na região lhe serviu de base para produzir esse romance, que teve uma primeira versão perdida em 1991 (escrita em três semanas) e encontrada em 2008, quando Tézenas pôde ler o texto com bastante distanciamento e reescrever por completo a obra de estreia.

Esse romance pode ser lembrado como uma história de assassinatos, corrupção e trabalho escravo, no qual um homem comum vai do céu ao inferno do dia para a noite, acusado de matar uma pessoa. Mas o autor francês conseguiu ir muito além, mostrando desde um sistema prisional cada vez pior (até nos dias de hoje), a truculência de homens poderosos, que mandam e desmandam em toda a região e pessoas escravizadas, sem nenhum apoio. Ou seja, o ouro de Quipapá mostra uma terra violenta, e como o ser humano pode ser tão cruel com o próprio semelhante.

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