Por Ney Anderson

A literatura brasileira contemporânea sempre nos revela boas surpresas. É impossível acompanhar tudo o que é lançado pelas editoras. No entanto, com um olhar um pouco mais atento, é possível encontrar livros de autores comprometidos com a arte. Lógico que afirmar que apenas um ou outro escritor é empenhado, e por isso mereça aplausos, é um grande perigo. Quantos autores estamos lendo, realmente, para falar uma coisas dessas? Em todos os estados existem pessoas, nesse exato momento, produzindo, quebrando a cabeça com cenas, diálogos, cenários, enredos etc. Alguns conseguirão, depois de mais esforço e sorte, publicar o tão sonhado livro. Mas o leitor também precisa de um pouco de sorte. Quem nunca entrou numa livraria e ficou indeciso na hora de escolher um romance? Depois de ler a sinopse, orelha e os “blurbs”, que são os comentários elogiosos de autores conhecidos, quase sempre o resultado dessa história é o pagamento no caixa e a satisfação de mais um livro para ler.

A continuação, claro, é a leitura dessa nova aquisição. É aqui que o escritor começa a ganhar, ou perder, os leitores, mas difícil ainda do que produzir o livro. O livro, antes de tudo, também é um objeto visual. Muitas pessoas, acreditem, compram sim, o livro, por causa da capa. Imagine então entrar numa livraria, ou passar por um sebo, e encontrar um  com a capa toda azul, onde estão uma cama, um criado-mudo, duas luminárias, cercadas por peixinhos laranja, com o curioso título: Estranhos no Aquário. Adriana Armony, a autora do romance, deve ter sentido uma alegria imensa quando recebeu o livro finalizado. A história que ela criou não poderia ter sido embalada de melhor forma.

Repleto de metáforas sobre o tempo, Estranhos no Aquário (Editora Record, 208 páginas, R$ 37,90), nos mostra a vida do jovem Benjamim, que sofre um grave acidente de carro na noite do réveillon, e fica com sérios problemas de memória, inclusive, fazendo-o achar que todo dia é o último do ano. A narrativa é ágil e entrecruza as visões do pai, da mãe, e do próprio Benjamim, sobre o acidente. Não só isso. O drama é muito maior. A história dos conflitos da família vai sendo desenhada de uma maneira tão perspicaz, que chegamos à conclusão, da necessidade do acontecimento, para unir os cacos de uma vida esfarrapada.  O tempo em Estranhos no Aquário é  artigo indispensável, que nos mostra toda hora o poder que tem, seja para apagar os ressentimentos ou para reforçar as mágoas. Adriana Armony expôs, com delicadeza, que todos nós somos estranhos em nosso próprio mundo de vidro, e ele sempre está prestes a se quebrar.

A autora, que também é doutora em Literatura Comparada pela UFRJ, já publicou os livros: Nelson Rodrigues, leitor de Dostoiévski, que foi sua tese de doutorado. Judite no país do futuro (2008); A fome de Nelson (2005); e organizou, com Tatiana Salem Levy, a coletânea Primos (2010), da qual também participou com um conto. Em entrevista exclusiva para o Angústia Criadora, ela comentou sobre o romance mais recente, mercado editorial, novos autores e vários outros assuntos.

“A literatura brasileira continua na periferia”

Foto divulgação: Paula Johas

Você trabalhou com algo muito abstrato: o tempo. Como foi construir uma história onde a principal questão estava totalmente fragmentada na cabeça do personagem principal?

Trata-se, na verdade, de um processo universal: pois o tempo só existe na medida em que é apreendido, reconstruído e projetado pelas nossas mentes. E nossa vida é a soma de acontecimentos fragmentados aos quais continuamente procuramos atribuir continuidade e sentido. Nesse processo, nossa memória edita o que aconteceu: apaga alguns acontecimentos, enquanto aumenta e deforma outros. Em Estranhos no aquário, esse mecanismo é radicalizado na doença de Benjamin, mas o seu princípio rege a memória de todos os personagens,e até mesmo a própria construção da narrativa.

No romance existem três pontos de vista. Desde o princípio, quando resolveu escrever esse livro, queria essa alternância de vozes dentro da narrativa, ou só descobriu isso no processo da escrita? 

A alternância de vozes surgiu já no princípio, ou mesmo como princípio, do romance. São três pontos de vista principais: o de Benjamin, o de Júlia e o de Roberto, mas mostra-se também, em um momento particular, – sempre na forma de discurso indireto livre – o ponto de vista de Maíra. Tal como o próprio movimento da memória, a narrativa é construída em fragmentos de vida e tempo que serão matéria para a construção da “verdadeira história” pelo leitor, história esta que sempre acabará sendo relativa e imprecisa, embora não totalmente indeterminada.

Há uma formulação do filósofo Espinosa de que gosto muito, e na qual em parte me baseei para montar o enredo do Estranhos: Deus, ou a Natureza, é a soma de todos os acontecimentos particulares intrincadamente relacionados numa cadeia de causa e efeito. Quanto mais acontecimentos, corpos e situações conhecermos na cadeia, mais estaremos próximos da verdade, só que é impossível para um indivíduo conquistar essa totalidade. Talvez escrever seja uma maneira de se aproximar desse Deus – embora sem jamais alcançá-lo.

Várias situações conflituosas acontecem em Estranhos no Aquário, justamente por conta da perda da memória do protagonista. É uma metáfora do mundo hoje, onde tudo é descartável e a história, ou asinformações importantes, nunca são lembradas como deveriam?

Não sei se é algo exclusivo do mundo contemporâneo. Tem sido um tema fascinante em todos os tempos, mas que em nossa época, com o avanço da neurociência e da tecnologia, parece ainda mais relevantes. Não à toa o romance se passa na virada do milênio, com a ameaça do bug que apagaria a memória de todos os computadores. De qualquer forma, um dos principais temas da literatura sempre foi justamente o caráter movediço de toda verdade, assim como a incomunicabilidade da experiência humana – a distância e a incompreensão que se estabelecem mesmo entre aqueles que mais se amam. No mundo atual, com sua mistura de tendências de isolamento e alienação com impulsos sociais múltiplos e frequentemente superficiais, há algumas circunstâncias bastante propícias a essa distância. Em outras épocas, talvez tenha havido outras.

Qual o seu ponto de partida para a concepção desse romance? A ideia veio de uma história real?

Estranhos no aquário surgiu de uma imagem: um quadrado de vidro que permite a visão do interior de uma piscina, como num aquário. Eu estava de férias numa pousada em Búzios e, ao descer a escada que dava acesso a uma sauna subterrânea contígua à piscina, percebi que as pessoas que estavam na água podiam ser vistas das espreguiçadeiras que ficavam em frente a esse quadrado. Essa imagem, por sua vez, se associou à história que ouvi sobre um médico que sai do plantão e deixa de atender a um paciente acidentado, sem saber que se tratava do próprio filho. Imaginei então um personagem vendo algo inesperado acontecendo diante dos seus olhos nessa espécie de aquário, saindo transtornado e sofrendo um acidente de carro. Imaginei que esse filho teria a memória afetada e, portanto, não se lembraria do que ocorrera antes do acidente.

A relação entre pai e filho é muito presente no livro. Também pode ser entendida como uma grande metáfora das relações, onde um trauma, em muitos casos, é o responsável por essa aproximação?

Situações de conflito extremo nos levam a refletir e mudar. É a doença da memória do Benjamin que aproxima pai e filho e reescreve a memória da família. Essa me parece uma experiência universal – a descoberta de uma realidade pelo seu avesso, ou, como na epígrafe do romance (de Kierkegaard): “só quem desce aos infernos resgata as pessoas que ama”.

Sua forma de contar a história é bastante rápida, mesmo tratando de um assunto muito delicado. Em momento algum precisamos voltar para entender alguma coisa, a leitura flui tranquilamente. Você está satisfeita com o grau de sofisticação que alcançou nesse romance?

Ao contrário dos anteriores, este é um romance totalmente ficcional. A fome de Nelson, meu primeiro livro, parte de alguns fatos biográficos da juventude de Nelson Rodrigues contados por um narrador ficcional dostoievskiano, enquanto o segundo, Judite no país do futuro, aproveita em grande parte uma narrativa da minha avó paterna, imigrante da Palestina, antes de se voltar para a ficção.

Minha intenção era escrever um romance ao mesmo tempo ágil e denso. Estranhos no Aquário parece-me mais burilado do que os anteriores: o texto alterna passado e presente, usa múltiplos focos narrativos e espalha pistas duvidosas numa estrutura de suspense na qual o leitor tem de reconstituir a história. Nesse aspecto, acho que consegui alcançar o que me propus fazer, embora em momentos de desgosto literário universal me pareça o contrário. Mas, naturalmente, é preciso ouvir o retorno dos leitores.

Antigamente existia uma crítica literária nos jornais impressos. Hoje os jornais não dispõem de críticos e publicam, na maioria das vezes, sinopses cruas, sem análises. Isso comprometeu a qualidade do que se publica hoje?

Realmente, é um pouco desanimador que haja tão poucos críticos nos jornais impressos. Algumas sinopses são praticamente cópias dos releases das editoras. Não sei se isso compromete significativamente a qualidade do que tem sido produzido: há outros espaços de crítica, seja na leitura por parte de colegas e editores, seja no espaço da internet, seja nas universidades – embora essas costumem ser bastante lentas. De qualquer forma, todo escritor sempre terá de lidar interiormente com o diálogo com os seus predecessores ou com sua própria autocrítica.

Ainda dá tempo, com a velocidade do mundo hoje, em ler grandes romances? Ou você é da teoria de Edgar Alan Poe, que o ideal para uma história é ser lida de “uma sentada só”, como nos filmes, por exemplo?

Particularmente, adoro grandes romances: passei minha adolescência devorando Dostoiévski, e, quando realmente me apaixono, costumo ler longos romances em poucos dias. E sim, dá tempo, o que – à parte discussões sobre qualidade literária – é facilmente comprovado por alguns dos atuais best-sellers, longas narrativas que chegam a 500 páginas. Parece-me que pode haver mesmo uma demanda por narrativas extensas, embora ágeis, histórias que organizem e deem sentido à experiência em um mundo bastante fragmentado, sobretudo com a experiência das novas tecnologias.

Não me arriscaria a dizer qual seria o ideal em termos de leitura. Acho que há, sim, várias modalidades de leitura, da mesma forma como há vários apetites: para a degustação, o fast-food, a boa comida caseira, o banquete exótico ou as delícias vorazes… É bom que haja espaço para tudo, mas o fundamental é que cada tipo de literatura consiga encontrar o seu leitor. Nem sempre isso é fácil, no nosso mundo tão saturado de produtos e de informação não qualificada.

 As antologias de “novos autores” ou “nova literatura” costumam gerar uma série de polêmicas, por conta de determinado autor não ter entrado e ter perdido o “posto” para outro de qualidade questionável. Você já ficou chateada por não ter entrado em algumas delas?

Sempre fico um pouco chateada – mas acho que provavelmente este é um atributo da maior parte dos escritores. Antologias e prêmios envolvem um conjunto de gostos, relações (pessoais ou editoriais), determinados contextos e consensos criados. Por outro lado, no Brasil, publica-se tanto que é virtualmente impossível que quem faz a seleção leia todos os candidatos. Mas em muitos casos (embora nem sempre), o tempo faz a seleção e corrige as injustiças, pelo menos as mais graves.

Você está gostando da literatura que está sendo produzida hoje no Brasil? Quem são seus pares e quem mais admira?

Acho que este é um momento literário bastante rico. Mas às vezes me sinto um pouco deslocada entre os escritores contemporâneos, embora admire autores como Milton Hatoum ou Paulo Scott.

Muitos jovens autores sofrem com a primeira publicação. Como foi sua entrada no mercado editorial?

Foi surpreendentemente fácil, um  verdadeiro golpe de sorte. Eu terminara de escrever  minha tese de Doutorado, intitulada Nelson Rodrigues, leitor de Dostoiévski, e pensei em publicá-la, mas decidi que escrever um romance conquistaria mais leitores e seria mais divertido. Em poucos meses tinha escrito A fome de Nelson, que enviei por e-mail à Luciana Villas-Boas, então editora da Record. Não muito tempo depois, recebi um telefonema da própria Luciana dizendo que tinha adorado o livro e iria publicá-lo.

Onde a literatura brasileira está no cenário mundial? O que falta para que a ficção produzida aqui vire uma febre internacional?

A literatura brasileira continua na periferia (até em seu duplo sentido: periferia da literatura e na literatura). Não acredito que vire uma febre internacional – essa combinação de contexto, oportunidade, qualidade e feliz acaso é bastante rara. Mas parece-me que há, sim, possibilidade de algum crescimento no mercado internacional, sobretudo com o investimento que o governo brasileiro vem fazendo na divulgação da nossa literatura no exterior.

 

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