Crédito das fotos: Rafael Motta

Por Ney Anderson

Em homenagem aos 10 anos do Angústia Criadora, escritores de todo o país falaram com exclusividade ao site sobre literatura, processo criativo, a importância da escrita ficcional para o mundo e para a vida e diversos outros assuntos. Leia a entrevista a seguir com o convidado de hoje. Divulgue nas suas redes sociais. Acompanhe o Angústia Criadora também no Instagram: @angustiacriadora e Facebook: https://facebook.com/AngustiaCriadora

 

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Marcela Dantés nasceu em Belo Horizonte, é formada em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais e pós-graduada em Processos Criativos em Palavra e Imagem pela PUC-Minas. Seu livro de estreia, a coletânea de contos Sobre pessoas normais (Ed. Patuá), foi semifinalista do Prêmio Oceanos. Em 2016, foi a autora residente do FOLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos, em Portugal, a convite do escritor José Eduardo Agualusa. Em 2020 lançou seu primeiro romance, Nem sinal de asas (Ed. Patuá).

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O que é literatura?

Literatura é ferramenta para tempos bicudos.

Para quem escreve, desconfio que seja a única forma de continuar existindo – uma força brutal que nos move e nos permite abrir os olhos de manhã.

Para quem lê, são oportunidades, várias, novos mundos que se desenham ou a realidade que se coloca ali, crua, doída ou bonita, mas sempre necessária.

O que é escrever ficção?

Para mim, escrever ficção é, antes de tudo, um ato de coragem: é enfrentar dia após dia as suas neuroses e aflições, colocar em palavras o que te atravessa.

Mas escrever ficção é, também, abrir portas, desenhar caminhos, erguer pontes e, nessa engenharia, encontrar formas de se aquietar e de falar com o outro.

Vocação, talento, carma, destino…..o escritor é um predestinado a carregar adjetivos que tentam justificar o ofício?

E quem não é? Não me parece ser um privilégio nosso. A escrita é um ofício como qualquer outro e isso significa que ela carrega consigo os pré-conceitos, as interpretações apressadas, alguns olhares revirados. Escrever é uma escolha, um processo. Se houver talento, tanto melhor, mas é isso que define? Acho que não.

Qual o melhor aliado do escritor?

O café, claro.

E qual o maior inimigo?

O café, claro.

O que quero dizer aqui é que o café representa a obsessão, a total incapacidade de fechar os olhos, deixar o texto descansar, as coisas seguirem seu rumo.

Escrever é um ato político? Por qual motivo?

Totalmente. Escrever é se posicionar, se expor, dar a cara (e o corpo inteiro) a tapa – e muitas vezes apanhar. Isso é político.

Nos dias de hoje, aliás, estar vivo já é um imenso ato de resistência. Gritar, então, é guerra.

Quais os aspectos que você leva em conta no momento que começa a escrever?

Escrever, pra mim, é método. Antes que as palavras ganhem as páginas, mesmo nos textos mais simples ou curtos, houve muita pesquisa, rabiscos soltos, desenho de uma estrutura. Para contos ou narrativas mais extensas, a construção das personagens, um perfil breve ou extenso de cada uma. Muitas vezes, uma linha do tempo. Dezenas de imagens de referência. Então, o momento de começar a escrever é o momento de juntar tudo isso, de sistematizar qualquer coisa que já ocupava a minha cabeça há tempo demais.

Também, é preciso checar: se o bebê dorme, se o cachorro está alimentado, se os pés vestem meias adequadas.

 A literatura existe para entendermos o começo, o meio ou fim?

Eu acho que nenhum deles. Pra mim, a literatura existe para ajudar nessa travessia, em todas as etapas – nem sempre com respostas, mas todas as vezes com boas intenções.

Se escreve para buscar respostas ou para estimular as dúvidas?

A gente escreve para buscar respostas. Mas quando percebe que elas não chegam (e elas nunca chegam) a gente continua escrevendo. Então, talvez, a gente goste da dúvida. Não sei.

Criar é tatear no escuro das incertezas?

No meu processo, a incerteza vem, principalmente, no momento de me expor: compartilhar um texto, falar sobre ele, ver o que me é tão íntimo chegando ao outro – isso dá medo, frio na barriga, assusta. Mas também é o que me move, é o que dá sentido pra muita coisa. A incerteza é parte do processo, então.

Cite um trecho de alguma obra que te marcou profundamente.

Todos estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total. Todos os sucedidos acontecendo, o sentir forte da gente — o que produz os ventos. Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. Grande Sertão: veredas, do Guimarães Rosa em .

É possível recriar o silêncio com as palavras? Como?

Um bom escritor tem que ser capaz de criar qualquer situação: o silêncio, o caos, o terror, uma enorme festa. Uma boa descrição é o que permite a construção de uma nova realidade – seja ela o silêncio ou o ruído.

Para além disso, a literatura pode ser um convite à introspecção, ao pensamento, ao olhar para dentro de si – criar nos outros os silêncios necessários.

Você acredita que qualquer pessoa pode escrever uma história? Mas, então, o que vai fazer dela escritora, de fato?

Qualquer pessoa pode contar uma história, basta querer. Não acredito muito nesse lugar privilegiado do escritor. Repito: é um ofício – escritor é aquele que escreve. Ou, ainda, aquele que conta para que um terceiro possa escrever – porque não? O compromisso é com a história, seja ela qual for.

É preciso saber olhar o mundo com os olhos da ficção? O mundo fica melhor ou pior a partir dessa observação?

É preciso saber olhar o mundo com todos os olhos. A literatura só acontece onde há curiosidade, interesse genuíno, empatia. Os olhos da ficção, então, são aqueles que sabem que há sempre muito mais do que podemos enxergar e que seguem inquietos, sempre.

A curiosidade é mais importante que a caneta e, nesse sentido, a observação, por mais difícil ou indigesta que possa ser, deixa o mundo melhor.

Todo texto ficcional, mesmo os mais extensos, acaba sendo apenas um trecho ou fragmento da história geral? Digo, a ficção lança o seu olhar para as esquinas das situações, sendo praticamente impossível se ter uma noção do todo?

Sim, a ficção é um recorte, ou vários. Tanto é assim que temos um sem número de obras tão distintas quanto se pode imaginar, sobre o mesmo tema. É uma combinação do olhar – que já falamos, com o momento e com tudo aquilo que um autor carrega consigo. É uma possibilidade entre milhões e talvez isso seja o mais bonito.

 Nesse sentido, uma história nunca tem início, meio e fim?

E deveria?

Você escolhe os seus temas ou é escolhido por eles?

Eu escolho os meus temas. Eles me chegam das mais diversas formas, como o último romance que nasceu inteiro de uma notícia de jornal, ou ainda como um conto que me aconteceu dentro de um ônibus em menos de meia hora. Mas sou sempre eu que decido o que vai ser, como vai ser e porque. Se não for algo que me atravessa, que me move, nunca vai virar literatura.

É necessário buscar formas de expressão cada vez menos sujeitas ao cânone, desafiando a língua, tornando-a mais “suja”, para se aproximar cada vez mais da verossimilhança que a história pede? Ou seja, escrever cada vez “pior”, longe da superficialidade de escrever “certinho”, como disse Cortázar, talvez na tentativa de fugir da armadilha do estilo único?

É preciso fugir de todas as armadilhas. Se possível for, é recomendável que se pegue as armadilhas, embrulhe-as em metros e metros de plástico bolha e as jogue no fundo de um armário de um cômodo escuro. Ciente, é claro, que enquanto se faz isso, novas armadilhas já surgiram.

Sempre haverá a expectativa, a comparação, a cobrança pelo estilo – que vende, que deu certo, que deverá ser repetido até que não. Pra mim, escrever bonito é escrever com as entranhas. O resto é querer ser.

Quando é que um escritor atinge a maturidade?

Quando se torna um chato.

 O leitor torna-se cúmplice do escritor em qual momento?

O pacto está firmado no instante exato em que a capa de um livro se abre pela primeira vez.

Apenas um livro para livrá-lo do fim do mundo em uma espaçonave. O seu livro inesquecível. Qual seria?

Uma vida pequena, da Hanya Yanagihara.

Qual a sua angústia criadora?

O medo do silêncio.

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