O projeto Eu escritor está na reta final, os textos apresentados a partir desse, de Gerusa Leal, serão os últimos. Nesse artigo, a autora faz um breve apanhado de tudo que foi analisado por ela ao longo dos meses. Lembra que um conto ou romance precisa ter um começo, meio e fim. “Não necessariamente nessa mesma ordem”, diz. Gerusa relembra um texto da aula passada, criado por ela, e comenta alguns aspectos que não tinha percebido nas primeiras leituras. Propondo novos jogos de palavras e mudanças pontuais para dar maior fluidez ao que está sendo contado. No final, ela indica alguns livros essenciais para a formação de um escritor.
Boa leitura!

Por Gerusa Leal

 

“KAMIKAZE

 Apago a luz do escritório.

Plaft! – a mariposa se esborracha na tela do micro.”

Era uma vez… acabou-se o que era doce.

Pois é, todo prazo vence. Chegamos ao nosso último papo, pelo menos nesta etapa do projeto Eu escritor, iniciativa do jornalista Ney Anderson, no blog de sua edição, o Angústia Criadora. Afinal, toda narrativa, seja micro feito a que tive a ousadia de partilhar acima, seja um romance de seiscentas páginas, tem um começo, um meio e um fim. Não necessariamente nessa mesma ordem, e muitas vezes a história continua depois do desfecho. Mas a narrativa precisa ser concluída, mesmo que se faça apenas um mínimo recorte da história. E mesmo que o desfecho deixe a história (mas não a narrativa) em aberto.

Vocês que nos acompanharam, que leram, refletiram, criticaram, produziram seus textos, prestaram atenção em nossas dicas, embarcaram nos exercícios que propusemos, devem estar notando que apesar das breves conversas e do curto tempo de trocas que tivemos, provavelmente devem ter mudado em alguma coisa seus parâmetros, pontos de vista, maneiras de encarar a criação literária. Afinal, o olhar do outro sempre traz algum viés que nos escapa. E nosso repertório de ferramentas de criação literária sempre pode ser expandido.

Para encerrar, então, voltemos ao texto que deixamos como material para exercício na vez passada. Antes de mais nada, quero dizer que nesse intervalo meu ponto de vista a respeito de concepções já assimiladas em termos de qualidade literária de um texto também foi questionada.

Li o texto que deixei pra vocês, como exemplo de um material que merecia lapidação, para alguns leitores qualificados. Continuo acreditando que merece lapidação. Mas fui surpreendida com retornos altamente positivos sobre o texto do jeito que está. Lembram dele? Vamos refrescar nossa memória:

 “O menino de camisa vermelha sentava na pedra dura e a seu lado árvores de copas altas formavam uma vereda de troncos vermelhos traçando um caminho estreito e escuro. De cabeça baixa pousada sobre os braços cruzados sobre os joelhos ele não conseguia respirar o perfume delicado dos pinheiros nem ouvia o som longínquo de uma refrescante cachoeira. Sem se importar com nada ao seu redor, a beleza, a força e a energia que o rodeavam transformavam-se na materialização da mais profunda tristeza.”

 Pois é. A maneira como o texto foi construído, o uso de palavras sonoras, melodiosas, principalmente quando lido em voz alta, agradou a alguns bons leitores. Então, meu ponto de vista mudou a respeito de não poder ter a arrogância de achar que sei e que posso determinar que texto tem ou não qualidade literária, se concebermos qualidade literária como a habilidade de seduzir o leitor, habilidade importantíssima na criação de narrativas que agradem, encantem, seduzam mesmo.

Querem ver? Leiam outra vez em voz alta.

É, parece que do jeito que está o texto já funciona. Mas continuo, para meu consumo, preferindo um texto mais enxuto, e acreditando que neste foram cometidos alguns equívocos. Que o texto tem mais possibilidades. Que pede cortes e, quem sabe, acréscimos e melhor organização.

Se não, vejamos: além de redundâncias tipo pedra dura, há vários adjetivos que não têm outra função no texto que não a de penduricalhos, não acrescentam nada. Então, pensando no momento principalmente no excesso de adjetivos, mas também na organização (montagem) e talvez em alguns acréscimos, imagino o mesmo texto mais ou menos assim:

 “O menino sentava na pedra. A cabeça pousada nos braços cruzados sobre os joelhos, não se dava conta do perfume dos pinheiros nem do som longínquo de uma cachoeira. Não lhe importava também que já estivesse anoitecendo. À sua frente, árvores de copas altas formavam uma vereda traçando um caminho estreito e escuro.”

Melhorou? Gostaram mais da versão anterior? É direito do leitor gostar ou não gostar, seja de que estilo de texto esteja degustando. E do escritor, também, escrever da maneira que lhe satisfaz. É importante imaginar nosso leitor ideal. Para que tipo de leitor e para que quantidade de leitores nós nos propomos a escrever. O texto modificado ainda pode ser infindavelmente trabalhado. Mas espero que tenha ficado claro pelo menos que existe mais de uma maneira de se narrar as mesmas cenas, os mesmos cenários, as mesmas histórias. E que o escritor que tem domínio das ferramentas que lhe permitem as variações possíveis leva vantagem sobre o escritor puramente intuitivo, que pode até “acertar” uma vez ou outra no tom, no ritmo, na sonoridade, na exuberância ou no minimalismo do texto que pretende oferecer ao leitor, mas que não consegue chegar a seu objetivo de forma consciente.

Raimundo Carrero costuma dizer que escritor não tem estilo, quem tem estilo é o personagem. Então, continuemos lendo, estudando, exercitando, para que, conscientemente, consigamos que nossos personagens se expressem como desejaríamos que eles parecessem de fato para o leitor, e não que acabem todos tendo a nossa cara, usando apenas o vocabulário que preferimos.

Mesmo quando não fala diretamente, num discurso direto, cada personagem tem a sua “voz”, que não pode ser sempre a mesma, sempre a nossa. Tem personagem, cena, cenário, que pedem um tom, um estilo seco, enxuto, frases curtas, vocabulário limpo. Tem personagem, cena, cenário, que pedem um tom, um estilo exuberante, prolixo, frases longas, sinuosas.

Tem escritor que prefere narrar com mão de ferro e dizer pelo personagem o que ele mesmo poderia ter dito. Tem escritor que prefere, ao invés, deixar que o personagem, que a cena, o cenário, falem por si, mostrar ao invés de dizer.

Por exemplo: será que na segunda versão que apresentei do nosso texto de exercício deixa de estar claro, sem ser preciso estar explicitamente dito, que o personagem está num momento da “mais profunda tristeza”?

Estamos apenas começando. No entanto, nosso prazo em termos do projeto Eu escritor, venceu. Mas o universo da literatura, da leitura, da criação literária é inesgotável. Portanto, meus amigos, despedindo-nos por hora, sugerimos que não esqueçam sua dose diária de leitura de contos, poemas, novelas e romances preferidos, deixando, abaixo, mais algumas referências que, com certeza, aproximam o leitor interessado, e o candidato a escritor, da arte da ficção.

Entrou por uma perna de pinto, saiu por uma perna de pato:
Seu Rei mandou dizer que contasse mais quatro!
Entrou por uma perna de pato, saiu por uma perna de pinto:
Seu Rei mandou dizer que contasse mais cinco!

 

 Dicas de leitura

Sobre a Leitura – Marcel Proust – Pontes Marcel Proust – tradução de Carlos Vogt

Como aprendi a escrever – Maximo Gorki – Mercado Aberto– tradução Charles Kiefer

A vírgula – Celso Pedro Luft – Editora Ática

Para ler como um escritor – um guia para quem gosta de livros e para quem quer escrevê-los – Francine Prose – Zahar

A arte de escrever – Schopenhauer – L&PM

O leitor comum – Virginia Woolf – Graphia

O impulso – inflexões sobre a criação – Victor Sosa – tradução de Maria da Paz Ribeiro Dantas – Lumme Editor

Os segredos da ficção – Raimundo Carrero – um guia da arte de escrever narrativas-Agir

A preparação do escritor – Raimundo Carrero – Iluminuras

Por que ler os clássicos – Italo Calvino – Companhia de Bolso

Teoria do conto – Nádia Battella Gotlib – Editora Ática

Para ler romances como um especialista – aprenda a ler nas entrelinhas dos maiores clássicos da literatura – Thomas C. Foster – Editora Lua de Papel

Assim se escreve um conto – Mempo Giardinelli – tradução Charles Kiefer – Editora Mercado Aberto

Uma história da leitura – Alberto Manguel – Companhia das Letras

Oficina de Escritores – um manual para a arte da ficção – Stephen Koch – Martins Fontes

A escrita Criativa – pensar e escrever literatura – coordenador: Luiz Antonio de Assis Brasil – organizadoras: Camila Canali Doval, Camila Gonzatto da Silva, Gabriela Silva – ediPUCRS

As feridas de um leitor – José Castello – Bertrand Brasil

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