Por Ney Anderson

No romance Esboço (Editora Todavia), da canadense Rachel Cusk, uma escritora sai do Reino Unido e vai até Atenas, na Grécia, para ministrar um curso de criação literária. Mas o que acompanhamos desta mulher, que se chama Faye, não é necessariamente aulas de literatura. O que vai se desenrolando durante as páginas é um grande painel das vozes de pessoas que cruzam a vida da narradora.  Isso desde o voo na ida dela até o local do curso, quando um homem, vizinho de poltrona, começa a puxar conversar, continuando com outros personagens que ela encontra na capital grega, inclusive alguns alunos e pessoas que lhe aguardam para o curso. São histórias da vida de cada um, sobre assuntos diversos. Pessoas lhe falam sobre os próprios casamentos, as fantasias e ansiedades, a rotina profissional, os dilemas da vida e muitas outras coisas. Faye, no entanto, ouve e pontua com pequenas observações. É uma personagem na qual não expõe a sua voz diretamente. Apenas o leitor tem acesso aos pensamentos dela. Esboço é o primeiro da trilogia que inclui ainda os livros Trânsito, de 2016 e Kudos, de 2018, a serem publicados no Brasil pela Todavia.

O curioso na obra é que nada parece acontecer. Não existe um enredo tradicional. E a proposta de ser um romance com a literatura em primeiro plano, com dicas literária e conversas sobre o oficio de escrever, por exemplo, não estão lá explicitamente. Mas ao mesmo tempo em que ela não está falando da criação ficcional diretamente, a partir das histórias, das conversas, a autora fala muito sobre ficção, porque tudo o que estamos lendo é o grande rascunho da protagonista. Percorrendo as várias histórias que ouve dos diversos interlocutores, a narradora constrói um enredo baseado na própria solidão de ouvinte. A literatura que se mistura com a vida.

“Porque me fez ver meus livros não apenas como entretenimento para a classe média, mas como algo vital, em muitos casos uma boa salva-vidas, para pessoas – em grande parte mulheres, é preciso reconhecer – que se sentem muito sozinhas nas suas vidas cotidianas”.

Claro que existem algumas conversas sobre literatura, mas de forma pontual, apenas na superfície.  “O que me faz falta, disse Ryan, é a disciplina em si. De certa forma eu não ligo para o que estou escrevendo – quero apenas aquela sensação de estar outra vez em sincronia, corpo e mente, entende o que estou dizendo?  Enquanto ele falava, vi a escadaria imaginária se erguendo mais uma vez na sua frente, estendendo-se a perder a perder de vista; e ele galgando seus degraus com um livro suspenso na sua frente a instigá-lo”.

OUVIDOS ATENTOS

O próprio ato de ouvir, de conversar com as pessoas, dE olhar para todos os detalhes, inclusive os quase imperceptíveis para uma pessoa comum, já é uma atividade criativa para Faye, que vai montando pouco a pouco a sua obra. Dia após dia. “No sentido de que ele estava observando algo enquanto eu, logicamente, estava de todo imersa em ser aquela coisa”.

A narradora reflete de forma profunda sobre a vida e mostra, através dos personagens, como a literatura pode estar ligada ao sentido da existência, de impossível dissociação para ela. Como nesta cena, durante uma conversa entre Faye e uma aluna do curso de escrita. “Então fui até o outro cômodo e tirei um livro da prateleira, um livro de contos de D.H. Lawrence é o meu escritor preferido. Na verdade, embora ele esteja morto, de certe forma eu acho que ele é a pessoa que eu mais amo no mundo todo. Queria ser um personagem de D.H. Lawrence, viver a caráter num dos seus romances. As pessoas que eu encontro não parecem sequer ter caráter. E a vida, quando a olho através dos olhos dele, parece muito rica, mas a minha própria vida muitas vezes parece estéril, como um pedaço de terra ruim”.

O QUE É A ESCRITA

O livro oferece as camadas do que é a escrita, de como funciona o jogo e os artifícios literários. Mas por outro ângulo. É um livro que o leitor precisa de coragem para atravessá-lo. Porque tudo funciona em um clima de eterna observação da narradora. O leitor fica esperando que aconteça alguma coisa. Mas depois é possível entender que tudo não passa de um grande esboço, daí o título certeiro e a perfeita imagem estampada na capa. O exercício é exatamente o entendimento literário por trás de tudo que a narradora vai recebendo no decorrer da obra. Ela vai sendo afetada pelos acontecimentos e até pelas mínimas situações. E o leitor é parte da imersão que autora propõe tão singelamente no seu esboço. Ele não deixa de ser também um elemento importante no mar da sua criação.

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