Crédito da foto: Pepe Fernández

Por Ney Anderson

Silvina Ocampo foi uma mulher incomum, tinha um olhar excêntrico para o cotidiano, mas a prosa da autora argentina não obteve o mesmo sucesso dos amigos íntimos Jorge Luiz Borges e Júlio Cortázar. E também do marido Adolfo Bioy Casares. Admirada por Roberto Bolaño e Italo Calvino, a escritora teve a primeira publicação feita no Brasil apenas no ano passado, pela Companhia das Letras, da obra A Fúria, publicado originalmente em 1959, e que reúne a voz mais potente do seu rico universo fantástico.

São 34 contos feitos de momentos finais, transitando sempre no estranhamento. Os textos sugerem um deslocamento de histórias até chegar ao ato final, o encerramento como consequência de muitas coisas que aconteceram antes do conto (do último fio de olhar) que está no papel, mas que não está escrito (explícito) nas páginas. Pequenas informações que não estão lá para situar, mas para mostrar que um texto literário antes de qualquer coisa é um acúmulo de vidas passadas. O que está nos olhos do leitor nos contos de Silvina Ocampo é apenas o intermediário, pois há muito para acontecer depois das linhas escritas.

O texto de Ocampo tem muitas camadas. Podem ser lidas sob diversos aspectos e reflexões acerca da vida, da literatura e a condição de estar (pertencer) no mundo. Como no conto “A continuação”, uma carta-conto de despedida aparentemente simples, que estabelece uma história real com as dúvidas da narradora em relação ao enredo do texto ficcional. Arte e vida se misturam numa verdadeira aula de literatura. No conto “A lebre dourada”, é a alegoria da representação divina através do animal que dá nome ao título. Seguido do incrível “o mal”, sobre o delírio de um homem no leito de hospital. “Que preço tem um corpo. Vivemos como se ele nada valesse, impondo-lhe sacrifícios, até que entra em pane. A enfermidade é uma lição de anatomia”.

Em “Açúcar”, a inquilina sofre de uma influência macabra da antiga dona. “Parecia que a tranquilidade nunca seria rompida naquela casa de açúcar, até que um telefonema destruiu minha ilusão”. Outros contos tratam de personagens adivinhos e premonições. Amores não tão adoráveis e um sem fim de figuras malignas que estão por aí como pessoas normais, livre de qualquer suspeita. Como no conto sobre uma criança aparentemente normal, que em um momento de “fúria”, mas totalmente arquitetada, coloca fogo na amiga.

A mente sombria relevada em doses sutis. “Formulei mil vezes essas perguntas a mim mesmo, até que descobri o canivete que o menino tinha nas mãos e que guardava de vez em quando no bolso. Me tranquilizei pensando que, em última instância, podia matá-lo, cortando-lhe, na banheira, para que não sujasse o piso, as veias e pulsos. Já morto, eu o colocaria debaixo da cama”.

Para fazer uma analogia, A fúria (apesar do título) se assemelha a um espelho d’água de um rio manso, que esconde uma gigante força e muitos mistérios em seu interior, alcançado apenas por quem não fica na superfície, mas consegue faz o mergulho de muitos metros de profundidade.

A autora argentina exercitou com tamanha grandiosidade essa percepção da arte para além da arte. Não seria muito dizer que A Fúria é um ponto de passagem para alguma dimensão que não se sabe ainda qual é.

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