Por Ney Anderson

Toda prosa tem um objetivo a ser alcançado. Seja a realização de uma experimentação na estrutura do texto, na elaboração dos diálogos, nas cenas, nos cenários ou na criação de uma história original. E principalmente a concepção do (ou dos) personagem. Esse, quando bem feito, tende a transformar o que está sendo lido em algo, de fato, maior. É quase impossível criar uma boa história sem um personagem interessante. Ou o conjunto deles. Ao criar o personagem, o autor está carimbando a sua obra de forma gloriosa ou medíocre. É na primeira situação que se enquadra o romance Igor na chuva, de Hugo Guimarães, publicado pela Folhas de Relva. Mesmo sem saber, já que o livro foi escrito muito antes da pandemia, Hugo criou um personagem que representa exemplarmente as angústias dos nossos dias. Quando estamos prisioneiros da incerteza.

O enredo apresenta o personagem-título Igor, um homem de 30 anos, gay, atleta universitário, morador de São Paulo, que se sente um fracassado e toma fortes remédios para depressão, e que está no meio de um pandemônio, já que o mundo sofre com uma chuva ininterrupta há vários dias. A capital paulista, portanto, está um caos. Mas a confusão maior reside justamente na cabeça do protagonista da história, que vive só em uma quitinete (no momento sem energia elétrica), com uma gata, tendo que lutar fortemente com os dois mundos. O exterior e o interior. Ele tem a estranha mania de estar sempre na companhia de um martelo de arremesso.

Aqui o leitor acompanha os recônditos de uma mente em ebulição, sempre em estado de perturbação. É uma conversa bastante íntima consigo mesmo, tocando em feridas reais. Lembranças de amores e relações passadas. É impressionante a densidade dos pensamentos, na maior parte carregada de ódio, de uma vida profissional deteriorada, voyeur de paixões não correspondidas, de relação conflituosa com a família, onde só a mãe é o seu exílio.

Igor é um homem em conflito permanente, que vai expressando todos os sentimentos de forma crua, em carne viva. Passando a vida à limpo. Sonhos e pesadelos fazendo parte do mesmo pacote. O narrador fala para a plateia invisível, que na verdade é uma multidão. Sobre as agruras da vida, de não saber se será (ou se já foi) amado.

“Quando o silêncio derrotou minha cabeça, e o quarto e os objetos somaram-se ao silêncio com tanta eloquência, todos me olhando, me dizendo para sair de casa, eu disse “ok, eu vou”.

É uma prosa autocorrosiva, autodestrutiva, mas de um incrível lirismo. Onde o leitor vai se embrenhando no tormento do personagem. Em constante busca por fraternidade. Igor é alguém que sai da cama tarde e não tem vontade de seguir. Mas que acaba seguindo o seu destino mesmo assim. O martelo de arremesso, por exemplo, pode representar justamente o peso, o carma, o fardo da sua existência fragmentada. O seu cordão umbilical.

A construção narrativa é muito potente, de forma a dar conta da confusão mental de Igor. É um desafio criar um solilóquio, dentro da técnica do fluxo de consciência, para representar a mente confusa de alguém. Porque o personagem precisa ter profundidade e muitas questões mal resolvidas para realmente sugerir o deslocamento real da existência. Em nenhum momento o personagem de Hugo Guimarães causa desinteresse, mesmo com a sucessão de situações, que se dividem entre os monólogos e os solilóquios. Na medida em que a loucura de Igor vai aumentando, e explosão se torna literariamente mais atraente. As reflexões e críticas ácidas sobre o que é ser gay no mundo de hoje, que não é muito diferente do de ontem, dá um tom importante à narrativa.

O leitor passeia por uma mente corrosiva, que não polpa nada, nem ninguém. Nem a do próprio protagonista. Que, segundo ele mesmo, não aprendeu a sorrir. Principalmente por se sentir rejeitado pelo mundo. E acaba também tendo essa repulsa ao outro. No vai e vem do que narra, ele fica às voltas com as lembranças e na obsessão de uma paixão não correspondida por um certo garoto louro.

Hugo Guimarães criou um personagem que tenta compreender a própria existência

Em determinado momento, já no meio da obra, o protagonista sai de casa para tentar chegar a universidade e ir treinar. E encontra, claro, o clima de fim do mundo pelas ruas de São Paulo. E consequentemente pessoas que não dão importância, achando que o apocalipse é apenas uma chuvinha. O olhar de Igor para a cidade é intuitivo, sobre o que sobrará da nação se o mundo não acabar de verdade. Um país, segundo ele mesmo, que deixa os doentes à mingua não vale muita coisa. O olhar dele vagueia por vários lugares, através da viagem por uma dor que não se explica facilmente, mas que Hugo Guimarães faz tão bem. O autor mostra a literatura como um campo metafísico, onde todas as frustações ganham corpo, em cenas carregadas na estranheza da realidade eclipsada.

É um texto pesado em várias ocasiões, que mostra tudo de uma forma muito crua. As dores e os amores de Igor. E também pessoas mortas, meio mundo de desgraça e ele simplesmente andando no meio do caos, vestido apenas de cueca e arrastando o martelo.  Igor é alguém de um imenso vazio. O tom agressivo é reforçado emblematicamente nos encontros no vestiário da universidade (quando ele, enfim, consegue chegar), em cenas de sexo gay, onde o prazer é suplantado como uma espécie de penitência. Ele, inclusive, sempre encontra formas de se machucar. São cenas onde o ser humano está perdido na própria epopeia. Enquanto o mundo exterior acaba, o interior do personagem apenas reforça o caráter de deterioração em pleno estado de permanência. Em alguns momentos a narrativa vai sendo ricocheteada para diversos lugares, mostrando a desorganização mental do narrador.

“A crise vai acabar antes do divino dilúvio? Tanto faz. O mundo é – o planeta é, a humanidade não passa de uma arca furada”.

O livro não tem uma estrutura definida. Não existe necessariamente o desenvolvimento de uma trama, pois o enredo é autocentrado na mente de Igor. Na verdade, funciona mais pela fragmentação, do que por um enredo lógico. É o estado de torpor muito bem trabalhado, que causa incômodo ao leitor no primeiro momento. Porque a mente de Igor é um túnel submerso com vários caminhos. A ficção como arte de supressão dos sentidos. Da vivência catastrófica com o mundo.

Se é possível estabelecer um tempo cronológico para este romance, a história se desenrola em algumas horas. Mas isso é puramente subjetivo, porque os tempos de Igor são outros, em constante idas e vindas. De uma memória que não é fotográfica, é elipsada, de compreensão difusa, por vezes, para quem está de fora. Mas que faz todo o sentido na proposta da obra. Os conflitos aqui fazem jus ao termo, trabalhados com muitas doses de ironia.

A ficção suporta todas as loucuras e todo o caos. Hugo Guimarães experimenta como ninguém essa afirmação. Esse pequeno grande livro é como uma Bomba H, que não deixa nada sobrar depois que explode. A partir da mente labiríntica (e eclipsada) do narrador, vamos sendo engendrados por pesadelos reais, angústias palpáveis, e um sem fim de perturbações do personagem que, ao tentar se descobrir, acaba falando mais sobre o mundo ao seu redor.

“Os piores fantasmas são os fantasmas vivos, e eu sou um deles”

É uma escrita catártica, que tenta jogar a sua carta ao mar. Não por acaso, em uma cidade que está se desfazendo em água. E o enorme simbolismo que isso representa. A mesma água que é necessária para a vida, mas que também pode causar destruição.

O êxtase do término da leitura não é por algum contorno feliz (que não existe), mas porque esse personagem é um derrotado pelas circunstâncias da existência. O esplendor de Igor, no entanto, é ser quem ele é. Mesmo isso lhe custando muito caro. Em determinado momento, o personagem se pergunta: “será que a vida é mesmo sobre morrer na praia após nadar tanto?”

Parece que sim.  

“Deus falando aqui, jovem homem. Então o que faz aí embaixo? O que pensa que está fazendo aí embaixo? Igor falando aqui, deus. Nenhum cocô. Eu disse nenhum cocô! Disse olhando para o teto, com as mãos nos quadris, merda nenhuma! Você me colocou aqui, esqueceu? Assim como Vanda Gomes foi colocada. Foi colocada naquele fatídico revezamento 4 x 100 m no mundial de atletismo de Moscou em 2013. Vanda derrubou o bastão quando era certa a medalha para a nossa querida nação. Vanda não teve culpa, foi colocada lá substituindo uma atleta mais rápida por uma opção dos técnicos. O que Vanda poderia fazer? E para que me pôs aqui? Para escrever livros? Para plantar árvores? Até agora, só derrubei. E você deveria saber que os livros de papel estão com os dias contados, vai ter muita árvores”

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