Em novo texto de Gerusa Leal para o Eu escritor, ela comenta o momento da criação propriamente dita, com as ideias começando a preencher as páginas em branco, de acordo com o impulso de cada um. Aqui, Gerusa lembra, o impulso é o ato de colocar tudo o que se tem em mente no papel, depois de muitas leituras e aprendizados teóricos, e alerta: “Nada daquela lengalenga de inspiração, musa, muito menos cachaça”. Muito candidato a escritor, segundo ela, utiliza a velha máxima:”tenho um romance inteiro na cabeça”. No entanto, texto na cabeça não é texto. Ao final do artigo, Gerusa Leal faz uma proposta de criação bastante interessante, onde o exercício do olhar, já falado em outro momento aqui, é importante para qualquer escritor, seja ele iniciante ou não. Boa leitura!

Por Gerusa Leal

Criação

Imagem: reprodução internet

“Vamos colocar tudo no papel. Absolutamente tudo. Sem desprezos. Sem fiscalizações. Sem preconceitos. Nunca devemos ter vergonha daquilo que apenas anotamos. Talvez não possa ser publicado. Serve, no entanto, para criação. Nesse momento, daremos adeus aos tradicionais, aos clássicos, aos consagrados. Estamos em pleno ato de criar. Não é hora de cortes, de supressões, de acréscimos. O suor escorrendo no rosto e as palavras vão surgindo no papel”

Raimundo Carrero

E então? Depois de ler, ler de novo, ler muito, chega uma hora em que um ou outro leitor sente o impulso de escrever. Impulso? Sim, impulso. Nada daquela lengalenga de inspiração, musa, muito menos cachaça. Assim, por um ato de vontade, de cara limpa. Não que tomar um vinhozinho, uma cervejinha, uma caipirinha enquanto se escreve seja proibido. Mas não se depende nem dessas musas alcoólicas para escrever.

É tempo de colocar as ideias no papel. Porque há muito candidato a escritor que vive dizendo que tem todo um romance na cabeça. Texto na cabeça ainda não é texto. Só na hora de materializá-lo, no papel ou na tela do computador, é que começamos a lidar com as questões que nos propõem as palavras para expressar o quê e como queremos.

E vemos que a coisa não é assim tão fácil, tão automática como desejaríamos, a não ser que não façamos a menor questão de que nosso texto tenha qualidade literária. Mas nesse primeiro momento, o de materializar o impulso de escrever, é preciso tirar todos os críticos de cima dos ombros. Ninguém está espiando o que estamos escrevendo. Se nesse primeiro momento da criação ficamos nos policiando, acabamos travados. É preciso obedecer ao impulso, como ele vem, se não acabamos não escrevendo nada.

Acho que foi António Albalat, autor de A arte de escrever, quem chamou esse momento da criação de “primeiro impulso imperfeito”. Albalat, nascido em 1856, no sul da França, e falecido em 1935, foi crítico literário e autor de romances, importante jornalista, escreveu numerosos artigos, a sua maioria de interesse literário e foi amigo dos maiores escritores franceses do seu tempo.

Nessa nossa conversa de hoje, sobre o primeiro momento da criação, o primeiro impulso imperfeito, vamos caminhar um pouco ao lado do Albalat. Por exemplo, uma conhecida frase sua foi: “A imaginação não é outra coisa que uma memória evocadora.” Portanto, se você é daqueles, ao contrário dos primeiros, que já têm todo um romance na cabeça, gostaria de escrever mas acha que lhe faltam “ideias”, uma dica é se valer da memória.

Com um olho nas lembranças, naquilo que elas lhe trazem de histórias, de sentimentos, de cenários e paisagens, de cheiros, de sons, de texturas, comece a usar a própria fantasia. Seja você mesmo. Coloque tudo que vier à cabeça no papel. Não é hora de se preocupar sequer com gramática ou com regras sintáticas. Isso virá depois, em outro momento da criação. Mas se você não tiver um texto materializado não terá sobre o que trabalhar, as técnicas de pouco ou nada lhe valerão.

Dicas pra soltar a imaginação? Há muitas, espalhadas por aí em manuais sobre escrita criativa, sejam impressos, sejam na net. Por exemplo, se você já anda com vontade de escrever – ou já escreve mas anda meio enferrujado, meio travado – e as ideias não vêm, lembre de quando às vezes para contemplando a natureza, ou vai a uma exposição de arte e fica olhando, distraído, relaxado, um quadro, uma imagem. Quantas outras imagens, histórias, não surgem, não passeiam em seu espírito enquanto observa uma tela? Seja o que parece explícito na própria obra, sejam associações que só para você fazem sentido. Às vezes imagens e histórias que, aparentemente, nada têm a ver com a imagem observada.

O leitor de um futuro texto seu não precisa ter acesso ao que foi que lhe provocou a escrever o que escreveu. O texto pronto, de pé, não precisa mais dos andaimes que serviram para a sua construção. Mas imagens (assim como outras ferramentas e recursos) podem ser nossos andaimes na hora de começar a escrever (e durante quase todas as fases do processo, às vezes).

Gosto muito de escrever a partir de imagens, sejam elas visuais ou mentais. Durante um bom tempo, colaborei para uma revista eletrônica onde nossos textos, embora não obrigatoriamente, nasciam de imagens propostas pelos redatores. Era uma ótima provocação e gerou excelentes textos que inclusive acabaram, alguns deles, compondo o e-book Histórias Possíveis, editado pela Kindle BR.

Então, para não ficar no abstrato, hoje deixo uma imagem que lhe provoque, à sua maneira, a colocar nem que seja um parágrafo, um mini-conto, no papel. Lembre-se: sem desprezos, sem fiscalizações, sem preconceitos, sem policiamentos, sem críticos imaginários olhando o que vocês escrevem por cima dos seus ombros. Depois virá o momento de trabalhar o texto materializado. Agora é hora de inventar. Boa semana. Bom exercício.

6 thoughts on “Sem medo de criar”
  1. Mais uma vez muito feliz a imagem escolhida pra ilustração do texto, Ney. Obrigada por essa leitura plástica do que tento expressar. No texto de hoje, que trata exatamente da ideia, da imagética que às vezes provoca a ideia, está super bem casada 🙂 Abraço

  2. Muito legal esse texto, Gerusa. Temos que tirar mesmo esse peso dos críticos de cima da gente. Neste momento só existe o “escritor você” ali. A gramática trava muita gente. Claro, ela é de extrema importância para o escritor, mas devemos lembrar que não adianta ser um excelente gramático e não ter ideias. O bom é ter ideias e depois afinar a gramática do seu texto.
    Abs, Portela.

  3. Nunca vi tanta harmonia nos textos publicados aqui no Angustia. Parece que combinamos os temas. Telepatia?

  4. Essa turma, Fernando, não poderia ser melhor. Ótimos textos teóricos sobre literatura. Sem esquecer das qualidades de cada um como ficcionista. Um prazer tê-los por aqui.

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