Foto: divulgação

Por Ney Anderson

Quase toda a boa escrita que se preze tem na sua essência a aura do incômodo, fortemente atravessada muitas vezes por caminhos pedregosos e cheios de bifurcações, baseado na ideia que um texto literário deva oferecer diversas possibilidades de compreensão ao leitor. Além, é claro, da robustez do personagem, que passa a existir realmente na cabeça de quem o está lendo. Para isso acontecer, no entanto, o enredo não precisa ser ancorado em elementos didáticos, dizendo de maneira apressada, ao invés de mostrar com ações e conflitos.

É exatamente esse artifício literário que o escritor Tito Leite consegue fazer exemplarmente no seu romance Dilúvio das almas, publicado pela Todavia. Na história, o personagem Leonardo volta ao interior do Nordeste depois de ter ficado vários anos vivendo em São Paulo. Os habitantes da pequena cidade do sertão (de mesmo nome do título do livro) já estão modificados pelo tempo, assim como ele está. O retorno de Leonardo é carregado de surpresas, boa parte delas não tão agradáveis, principalmente com os familiares deixados para trás na sua jornada pessoal. A terra da sua juventude se torna inóspita, não mais o lar que ele buscava encontrar e que ficou no passado.

Dividida em quatro partes, Dilúvio das almas vai revelando as camadas desse personagem deslocado, as suas crenças, convicções e aprendizados, em confronto com antigos desafetos, ainda mais fortes e ácidos quando ele havia deixado o lugar, naquela terra comandada por gente poderosa. Ainda em São Paulo, ele é alguém que simplesmente flana na multidão diluída na solidão da megalópole. Mas Leonardo é alguém que não demora muito tempo em canto nenhum, sempre buscando uma espécie de recomeço seja onde for, fazendo várias atividades para sobreviver. Ele busca ser fiel a si mesmo, sem saber na verdade qual fidelidade é essa. Mas ele não tenta, de forma alguma, a purificação existencial.

Então, na volta, ele não se compreende naquele lugar de retorno, da memória afetiva. Pois Dilúvio das almas continua sendo atrasado em todos os aspectos. A escrita de Tito vai sendo formada como uma espécie de sussurro, uma reza, onde cada palavra e sentença é mastigada para afastar o enorme deserto da alma que o protagonista carrega, tentando  se abrir em tentativas de compreensão. Justamente por ele ser um estrangeiro da própria aldeia, um homem enterrado no subsolo do ser.

Tudo na vida deste homem parece virar fumaça. Ele vive o momento, o instante, pois como ele mesmo diz, ficar olhando o passado nunca dá sossego a ninguém. Então, a sua vida é carregado de incertezas. Neste personagem central existe uma crença muito forte em algo, muito maior do que a religiosidade possa transmitir. Não deixa de ser um personagem transgressor ao seu modo.

A escrita de Tito Leite é feita de uma tessitura muito fina, que acomoda vozes, detalhes e pensamentos. O personagem narrador vai contando a história da cidade, das figuras que preenchem aquele dilúvio das almas de ontem e de hoje. Leonardo carrega uma dor insolúvel, sentimento de culpa e perda, de tempo desfeito e nunca mais com a possibilidade de ser refeito.

Dilúvio das almas é um livro sobre o tempo e os desassombros do espírito e da existência. Compreender o que existe dentro deste homem, a carga de mistério que ele carrega, é a questão central da história, porque ele mesmo tenta encontrar isso. As linhas pulsam encanto e horror, em meio à paisagem desértica da cidade, das trevas escondidas em olhares, onde ninguém é inocente. É uma cidade minúscula na geografia e bélica nas atitudes, na desconfiança, ambientada na hostilidade, com muitos segredos.

Para incrementar ainda mais o enredo, existe uma morte misteriosa. O assassinato do primo de Leonardo, ocorrido antes do retorno do protagonista à Dilúvio. Inevitavelmente ele alimenta o forte desejo de vingança e tenta desvendar o autor do crime. E aí o livro acaba ganhando ainda outro sutil contorno. Ainda que não seja uma obra focada no realismo mágico, algumas pinceladas desse elemento entram na narrativa, como as lendas da região, por exemplo, para criar uma atmosfera ainda mais singular àquele lugar.

Sertanejo na essência, de atmosfera rude, ele também se envolve com uma mulher acostumada na dinâmica nômade e aventureira dele, mas até esse contato é quebradiço, não se sustenta em pé. Se apaixona, mas o relacionamento não se concretiza. Buscando a si mesmo no retorno ao passado, Leonardo é alguém que, contraditoriamente, não acumula nada, nem esperanças, muito menos a nostalgia das lembranças, elas apenas são o que são.

Por fim, Leonardo termina assumindo fazer parte da essência daquele lugar, pois ele é também Dilúvio das Almas, não apenas habitante, e sim habitado por todo aquele universo. Para o bem ou para o mal, acaba não sendo mais um deslocado no mundo, mas condenado ao inferno da própria terra.

“Dilúvio das almas”
• Tito Leite
• Todavia
• 112 páginas
• R$ 54,90

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