Foto: arquivo pessoal

Por Ney Anderson

Tentar definir um livro a partir da sua história central é algo natural quando se inicia uma nova leitura. Mas alguns livros não se sustentam simplesmente, ou apenas, pelo que está sendo dito e mostrado em primeiro plano. O alicerce narrativo da novela Trago comigo as dores de todos os homens (editora Escaleras), de Roberto Menezes, reforça justamente essa ideia. O enredo já começa direto, sem a inclusão de sinopse ou de qualquer outro texto introdutório. Pelo simples fato que isso pode entregar algo que merece ser descoberto em sua totalidade através da própria leitura da novela.

O livro inteiro é uma espécie de entrevista do narrador, poeta de certo prestígio, para um grupo de jornalistas. Não se sabe muito bem para onde a história está indo. Apenas que o narrador é alguém que será julgado, e que também está em um grande imbróglio com a advogada Silvia Rodrigues, resolvendo questões relativas aos direitos autorais da sua obra. É um poeta de relativa fama, dando um longo depoimento para uma plateia que não faz perguntas.

O que se destaca é justamente a criação desta voz. Um fluxo de consciência que vai sendo jogado na cara do leitor sem poupar no grotesco as lembranças do poeta. A mão pesa sempre para o lado mais obscuro da mente do personagem. Recheado de sarcasmo e crítica sobre os críticos literários (e os leitores) que nunca entenderam o seu trabalho, e principalmente a relação totalmente confusa entre os personagens, a novela segue um tom forte, verborrágico, até o impactante término. “Estava de saco cheio de viajar de cidade em cidade para dar a mesma palestra, contar as mesmas piadas, português, inglês, francês, tanto faz, eu estava de saco cheio. Estava de saco cheio de ficar sentado atrás de um birô com uma fila da minha frente e eu autografando livros para estranhos que nunca vão entender o que escrevi”.

“O engraçado é que a crítica especializadíssima em peso, que nunca acertou porra nenhuma do que escrevi, pensou que Carne e Sangue Delivery tinha a ver com a ditadura, e com todo aquele depoimento que cansei de repetir sobre os meus duros anos no regime militar”.

A voz do narrador é um somatório de muitas decepções, ao menos a partir da própria percepção de mundo, mesmo ele sendo alguém festejado no meio literário. O artista de meia-idade cheio de descrenças e um amontoado de agruras. Percepções, sobretudo, sobre o que é estar no mundo. Digamos que ele é um inconformado por natureza, algo intrinsecamente colado em seu DNA.

“Como um derrotado de meia-idade pode escrever versus que nos deixam perplexos? Meu Deus, meu Deus, por que admiramos um derrotado como este?”.

O poeta, segundo ele mesmo, aposentado, se define, por exemplo, como macho-zeta. Ou seja, a última categoria de homens. Ele repassa a vida em detalhes nas 75 páginas da novela. Transmitindo a sensação de pressa para contar a próprio história, como alguém condenado ao infortúnio final. 

O texto não é um fluxo de consciência experimental como Finnegans Wake, de Joyce. Aqui é tudo aparentemente mais claro. Mas tentar definir este livro em algum conceito é um erro, tanto quanto tentar buscar o significado dos dogmas cristãos, como diz o personagem em determinado trecho. O título, inclusive, é pura ironia.

“De que a vida não é o soletrar dos anos, e sim o dissecar dos segundos. Cansei de tentar entender metafísica, os dogmas cristãos e as letras das músicas de Jorge Ben. Ninguém até hoje conseguiu definir um ponto. Ninguém até hoje conseguiu entrar dentro de um ponto. A fragrância dos loucos, senhores, isso é uma coisa que vocês nunca vão entender. Isso é uma coisa que nenhuma resenha literária conseguirá explicar”.

A novela de Roberto Menezes, que tem um dos melhores textos da literatura atual, e seis livros publicados, apresenta o uso de muitas metáforas, dentro de uma densidade poética, mostrando alguém na contramão de tudo. A narrativa vai sendo levada para a suposição de um clímax, que de fato acontece e surpreende. É um livro curto, mas o interessante exercício de concisão tem causa e efeito bem definidos.

Trago comigo as dores de todos os homens é o último desabafo de um poeta inconformado. A carta de um náufrago que se perdeu do próprio mundo.

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