Crédito: Cristina Cortez

 

Por Ney Anderson

 

Carla Madeira tem o dom de aprofundar os conflitos e os dilemas humanos a partir de situações corriqueiras do dia a dia, do cotidiano cru, sem enfeites ou malabarismos filosóficos para demonstrar a potência da vida. Porque a vida, nas mãos de Carla, é apresentada como ela é, com as infinitas contradições naturais que ela apresenta constantemente.

É assim com o romance A natureza da mordida (ed. Record), quando o leitor acompanha a conversa de duas mulheres, de forma quase imersiva, em primeiro plano. A história é sobre Biá, uma psicanalista aposentada, apaixonada por literatura, e a jovem jornalista Olívia. Ambas se conhecem casualmente, quando Olívia está sentada em uma mesa de um sebo/café, o local preferido de Biá.

Logo no início, a pergunta determinante: “O que você não tem mais que te entristece tanto?”, feita por Biá ao perceber a moça chorando, acontece instantaneamente, desencadeando assim uma amizade inesperada, onde as duas protagonistas passam a compartilham o universo das suas solidões.

A natureza da mordida é construído sob alternância das vozes das protagonistas, em capítulos distintos, a partir das lembranças recentes de acontecimentos trágicos que marcaram as duas. Biá tem uma memória hiper-realista, ainda que baseada em fragmentos. O hoje, para ela, funciona quase como potentes retratos de uma vida passada. Por isso ela anota constantemente, para não esquecer dos momentos importantes. Olívia entra na história quase como uma espécie de fuga para essa senhora tão verborrágica, que fala e fala e fala na tentativa de não apagar a própria história no subterrâneo da memória.

Biá é uma pessoa dentro das próprias lembranças, mas, por vezes, nem tudo é tão real quanto ela imagina ser. Ela percebe, com isso, como a passagem do tempo pode ser implacável. Já Olívia, mesmo bastante jovem, guarda um sentimento de remorso por algo que ela não conseguiu controlar. A impossibilidade de mudar o curso das coisas, do destino que se impôs por um horrível fato, é uma espécie de flecha partida ao meio no coração da jornalista. Ela vê na experiência da outra uma ponte, a possibilidade de abrigo, para o sofrimento que está sentindo.

A natureza da mordida é um romance sobre perdas e refúgio. É um livro cheio de pistas, amparado na complexidade da mente das duas, mas de uma delicadeza sonhadora que ambas nutrem, com frases que se complementam em situações quase epifânicas, que vão se adensando mais e mais no decorrer das páginas. As memórias de Biá e de Olívia parecem labirintos de espelhos quebrados.

O leitor fica se perguntando onde esses encontros vão parar, porque elas simplesmente se conectam de uma maneira quase mágica, a partir de uma extrema casualidade, ligadas por cicatrizes diversas, cada uma carregando um tipo particular de dor existencial. Sobretudo em pensamentos do que poderia ter sido, dependendo das conversas e ações nos momentos certos e das palavras demolidoras.

Reflexões sobre a potência da vida e da morte em situações quase banais, corriqueiras e o desentendimento dessas mulheres com a própria sensação de abandono do mundo ao redor. As duas não compreendem os motivos de tantas coisas.

Nessa espécie de divã a dois, elas tentam compreender os “porquês” da vida e o movimento do destino na tentativa de contornar os abismos. Apesar da distância da idade, são mulheres com muitas coisas em comum. Muitas culpas. Quais palavras são capazes de transformar a existência? Se perguntam em determinado momento, para depois terem a percepção da proximidade do fim de amores do passado e a natureza da vida, na tentativa de um outro começo, dessa vez perfeito e sem tropeços.

Carla Madeira tem a habilidade de entrecruzar as histórias, dando peso a cada uma delas, sem deixar que a força diminua em nenhum momento. Memória e invenção, em certa medida, caminham de mãos dadas no enredo. Se fundem e confundem a todo instante.

O romance faz o leitor atravessar uma excelente viagem pelas potentes páginas dessa história. Percorrer a vida dessas mulheres tão fortes, mas dilaceradas por sentimentos difusos e contraditórios por tantas ausências e situações que a vida lhes impôs, derrama sobre as páginas uma seiva de angústia, medo e incompreensão.
A natureza da mordida é um romance sobre perdas, mas, sobretudo, sobre como essas ausências diversas são capazes de fazer da vida uma eterna busca de sentido.

A natureza da inevitável, e implacável, mordida da vida.

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