
Por Ney Anderson
Em Chuva de papel (Companhia das Letras), de Martha Batalha, Joel Nascimento é um repórter policial das antigas, testemunha do Rio de Janeiro de outra época, quando as páginas dos jornais populares jorravam sangue e periferia era o destaque. Na ocasião, ele se tornou um dos principais nomes desse tipo de jornalismo. Com mais de 50 anos de carreira, no entanto, Joel encontra-se atualmente numa fase nebulosa, decadente, sem tanto espaço na profissão e com muitos outros problemas pessoais para resolver, sobretudo o alcoolismo e a falta de dinheiro. São essas coisas que o impulsionam a tentar tirar a própria vida, mas nem isso ele consegue ter êxito, tanto que, depois de uma tentativa desastrada de suicídio, ele acaba se machucando gravemente, não a ponto de morrer, e acaba indo morar de favor na casa de Glória, uma tia de um colega repórter.
Se percebe que Chuva de papel é um romance tragicômico já nas primeiras páginas, principalmente na convivência entre Joel e a hilária Glória. É um livro muito engraçado. Nas primeiras páginas compreendemos o tipo de jornalista que Joel é. Há muitos anos trabalhando, cobrindo o lado B do Rio, as suas mazelas e dificuldades, a rotina nada glamourosa, em periódicos populares. Regina, então, é quase uma versão feminina dele, mas com outra visão e perspectiva da cidade.
Joel é um homem errante, onde tudo parece conspirar contra ele. Um típico repórter policial. Alguém que transformou cadáveres em narrativas para o público leitor, como ele mesmo afirma. Um jornalista cascata, bisavô das fakenews, no período de bastante censura por conta da ditadura. Ele escreve sobre a crueldade do Rio nos anos 1960, 1970 em diante. O livro funciona no vai e vem no passado, dele relembrando histórias de outras épocas e tentando sobreviver ao presente. A vida, os acontecimentos e o trabalho no jornalismo, também as muitas mulheres que passaram pela vida dele.
O protagonista é um repórter com muitas marcas dos anos ditatoriais, quando escrevia sobre assassinatos, esquadrões da morte, torturas e sobre o Rio decadente do subúrbio, além de um sem fim da miséria humana. O romance também tem muito do que foi o jornalismo da geração dele, sanguinolento, mas também social e um importante espaço para mostrar as mazelas do Rio.
A narrativa vai se desenrolando nessa convivência entre Joel, Glória e a vizinha Darcy, nas lembranças do passado e os ecos do presente, sem sinal de expectativas de futuro para ele. O texto é muito saboroso, leve, que convida à reflexão. A primeira parte do livro é Joel tentando se recuperar, encontrar algo que o faça querer seguir, mesmo ele sem saber o quê.
Joel queria ter escrito mais, registrado outras coisas para além dos textos passageiros dos jornais. E aí é justamente o papel determinante de Glória na história. O convívio entre os dois é um contraponto interessante entre a desgraça e a mazela, os dias repetitivos e a urgência da esperança.
Chuva de papel é um livro que conta histórias interessantes. Ao acompanhar a vida desses dois personagens, o leitor se depara com dramas pessoais muito bem trabalhados e fortes. Glória sempre disse que estava escrevendo algo. É justamente a partir dos cadernos com anotações dela que Joel descobre não apenas uma outra Glória, totalmente diferente da que ele conheceu nos últimos dias, mas um outro Rio de Janeiro, ainda mais fascinante e desconhecido para ele. É essa a vida dessa personagem, aliás, a tábua de salvação que faltava em sua rocambolesca e estropiada vida.
Nesta entrevista exclusiva ao Angústia Criadora, Martha Batalha, autora do premiado A vida invisível de Euridice Gusmão, fala sobre a ideia para escrever Chuva de papel, o processo de elaboração e sobre o atual cenário do jornalismo brasileiro, entre outros assuntos.
Angústia Criadora – O seu texto tem algo espontâneo, fluido, muito próprio do jornalismo. Esse foi um ganho importante, ter atuado por muito tempo na imprensa, para o desenvolvimento como escritora de ficção?
Martha Batalha – Eu acho que sim. Eu aprendi muito com jornalismo, eu aprendi a colocar a informação mais importante sempre no começo de uma história. Eu aprendi o que era ruído e o que era informação dentro de uma história. Eu aprendi a escrever rápido, eu aprendi a escrever de modo acessível. Em todas essas lições que eu achei naquela época que ficaram apenas no jornalismo, voltaram a se tornar importantes quando eu comecei a escrever ficção, porque a gente tem que escrever dentro de uma forma muito clara e direta. Eu gosto de uma escrita fluida e direta. Ter, através da escrita, esse contato muito íntimo com leitor.
AC- Existe quase sempre uma ideia de que, por usar o texto, jornalismo e literatura são irmãos. O que há de lenda e verdade nisso?
MB – Eu não sei se são irmãos assim. Eu acho que o texto é uma forma de comunicação, e uma forma de você passar mensagens, de passar conteúdo. O processo de leitura é um processo muito íntimo. É um processo que, dependendo de como você escreve, e sobre o quê você escreve, aquilo que a pessoa lê pode ficar com ela por muito tempo. Isso pode ser feito tanto na literatura quanto no jornalismo. São duas formas de falar da realidade. Às vezes você consegue falar melhor no jornalismo e às vezes você consegue falar melhor elaborando o real através da ficção.
AC – A semente para este livro nascer surgiu a partir de algo específico ou você já queria tê-lo escrito antes? Foi algo que você já vinha pensando?
MB – Eu queria fazer um livro sobre o meu tempo de jornalista, de repórter. Não sabia exatamente como seria. Sabia que seria a vida de um velho repórter de polícia e sabia que eu recontaria nos livros essa história. Na literatura a gente só sabe o que vai acontecer quando a gente está fazendo àquilo. Às vezes temos uma ideia, acha que vai ser de um jeito e aparece de outro jeito. Mas, sim, eu já tinha essa ideia dentro de mim há algum tempo.
AG- Chuva de papel se sustenta no protagonismo de dois personagens. São duas vozes distintas, mas que se complementam. Quais cidades do Rio você quis apresentar aos leitores a partir da visão desses dois personagens?
MB – Eu acho que existem duas cidades nessa narrativa que não são as cidades de cartão-postal. Uma é a cidade do Joel, que é feia, cruel, das pessoas que estão sobrando na cidade do Rio de Janeiro, que terminam marcadas por tragédias. É a cidade que o Joel reporta, sobra a qual ele escreve nas reportagens dele. E a outra cidade é a que acontece dentro dos apartamentos, nessa vida invisível das mulheres nos apartamentos. Eu tento contar um pouco através do dia a dia da Glória e da Aracy.
AC – O Rio de Janeiro é bastante central na obra. Digamos que esse é um livro carioca, com uma história local. No entanto, o romance não fica restrito ao puro bairrismo, ele consegue transpor essa linha. Como não cair na armadilha de restringir o livro à ambientação, apenas? Até que ponto esses personagens conseguem se tornar universais?
MB – Eu acho que eu preciso fazer personagens que são imperfeitos. Eu preciso fazer personagens que gerem empatia no leitor. Eu preciso fazer personagens onde eles (os leitores) possam se reconhecer ou reconhecer outras pessoas, a condição humana nesses personagens. E esses personagens podem estar no Rio de Janeiro, eles podem estar em Berlim, no Japão etc. Não importa onde vai estar o personagem. O que importa é tentar criar pessoas imperfeitas, com sonhos e frustrações como todos nós.
AC – É possível, por exemplo, que um jornalista de outro local se identifique completamente com as vivências de Joel, um repórter carioca por excelência e devoção?
MB – Não sei te dizer. Eu acho que essa é uma pergunta que me coloca no lugar de outro repórter. Eu acho que depende do repórter e da leitura que ele vai fazer do livro.
AC- Chuva de Papel é um livro também sobre muitas miudezas, com situações cotidianas da convivência entre Joel, Glória e alguns outros personagens. Além disso, você trouxe para o centro da narrativa a Covid-19, tornando-o ainda mais atual. É uma maneira de, a partir do micro, fazer o leitor compreender o macro das relações humanas e também da sociedade e toda a sua complexidade ?
MB – Eu acho que a vida se dá no dia a dia, não é? A vida se dá nas pequenas questões cotidianas. Eu acho que um escritor ele não faz isso de modo, de novo, intencional. |Ele vai contando a história do modo que ele sabe, de maneira bastante intuitiva, ele sabe que a vida está no cotidiano.
AC – A cidade do Rio de Janeiro é uma personagem. O seu exercício criativo parte da ideia de que tudo pode servir para a ficção?
MB – Claro. Tudo pode servir para a ficção. E mais, o que serve para mim pode não servir para outra pessoa. O que serve agora para mim pode não servir no futuro. O básico da criatividade é isso. É que tudo pode ser usado e tudo pode acontecer, independente da hora e da pessoa. Essa liberdade é muito importante para a criatividade.
AC – O seu livro anterior foi, e continua sendo, um grande sucesso. Existe a expectativa em obter o mesmo alcance com esse novo? É uma cobrança que você se faz ou não?
MB – Não. Eu não me faço essa cobrança. Eu fiquei muito feliz com o resultado deste livro (Chuva de Papel). É o livro que eu queria escrever. Acho que subi um degrau com essa escrita, mas eu não posso controlar o que vai ser dele.
AC – Você se utiliza bastante do humor, do riso nervoso, para contar essa história. Só assim, através do riso e da ironia ácida, é possível não enlouquecer no Brasil ? É preciso ser tragicômico, com doses altas de ficção, para poder suportar toda essa realidade que estamos vivendo?
MB – Eu creio que o humor é uma das formas de você conseguir elaborar a realidade. Existem outras, mas o humor é uma delas e é muito usado no Brasil, porque a gente precisa. O humor é muito usado também no Rio de Janeiro. Então, sim, eu acho que o humor é uma resposta à realidade. É uma forma de você conseguir lidar com situações difíceis de uma forma saudável.
AC – Joel nos mostra, através dos pensamentos dele, o lado B da Cidade Maravilhosa, em uma época de ditadura, com a imprensa vigiada etc. Essa, digamos, nostalgia em escrever sobre um personagem que viveu tantas situações na era pré-internet, traz algum paralelo para os dias de hoje? Qual?
MB – Não. Eu acho que nós estamos numa época muito, muito melhor. Nossa, eu acho que a gente pode escrever sobre qualquer coisa nos jornais, eu acho que existe liberdade de expressão. Eu acho que os brasileiros fizeram um trabalho incrível de recordar como era ruim aqueles tempos sem liberdade de expressão. Nós estamos em um momento muito confuso, é lógico, a democracia está confusa, o Brasil está dividido, mas as pessoas podem se expressar. Isso não tem preço.
AC – O personagem, aliás, é um sujeito amargurado, sem expectativas de futuro, querendo encerrar a própria existência. É alguém que está desistindo. Será que ele pode ser entendido como a personificação das imensas dificuldades de uma profissão que tem enfrentado tantos desafios nos últimos anos, que luta arduamente para sobreviver aos novos tempos?
MB – Eu acho que o jornalismo hoje ele é muito diferente. O Joel pode simbolizar o que era o jornalismo. O jornalismo hoje é diferente, mas ele está sobrevivendo de outras formas. Você tem os jornais, mas também sites como o Meio, o Nexo, sites de jornalismo investigativo. Então eu acho que um personagem como Joel ele tem pouco espaço no mundo atual do jornalismo. Por outro lado, é muito importante que ainda seja feita a reportagem local, das comunidades. Infelizmente isso parece que está terminando. Está terminando aqui nos Estados Unidos, está terminando também no Brasil, os jornais das cidades, menores. Isso é muito ruim, na verdade. Eu acho que o Joel ele representa um jornalismo antigo, eu acho que existe um jornalismo jovem que está sobrevivendo de outras formas por aí.
AC – O jornalismo é uma profissão em via de extinção? O jornalismo hoje representa o quê?
MB – Eu acho que não. Vai ter sempre espaço para boas reportagens sempre. É um momento extremamente difícil, mas reportagens investigativas são extremamente importantes em qualquer lugar do mundo. Você pode ver os papéis do Pentágono, por exemplo, o Watergate que ajudou a fazer com que Richard Nixon saísse do poder nos Estados Unidos. Então eu acho que o jornalismo vai sempre existir.
AC – Até que ponto é preciso distanciar o ruído da realidade ao fazer literário? Digo, até que ponto é permitido (e benéfico) o real entrar na ficção?
MB – Quando eu escrevo não obedeço a lógica, mas a intuição. Se eu fosse só pensar como o real tem que entrar na ficção o meu texto ficaria engessado. O que eu tenho que fazer é os meus personagens se moverem na história de uma forma que o leitor vai acreditar. Eu não penso no quanto de realidade está ali ou não.
AC – O que você consegue observar com a literatura que não conseguia enxergar apenas com o jornalismo?
MB – A literatura ela pode ir além. A literatura ela pode falar de nuances dos personagens. Você pode escrever em qualquer pessoa, ter um estilo na escrita. O jornalismo é mais factual. A literatura pode ser mais profunda, ela pode falar, às vezes, da realidade até mais do que um texto de não ficção. Ela existe para que a gente consiga elaborar nesse imaginário aquilo que a gente, às vezes, não consegue entender só vendo o que acontece no real.