crédito das fotos: Gabriela Reinheimer

Por Ney Anderson

Em homenagem aos 10 anos do Angústia Criadora, escritores de todo o país falaram com exclusividade ao site sobre literatura, processo criativo, a importância da escrita ficcional para o mundo e para a vida e diversos outros assuntos. Leia a entrevista a seguir com o convidado de hoje. Divulgue nas suas redes sociais. Acompanhe o Angústia Criadora também no Instagram: @angustiacriadora e Facebook: https://facebook.com/AngustiaCriadora

 

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Daniel Gruber é escritor e editor, natural de Novo Hamburgo-RS. É mestre em estudos culturais e doutor em escrita criativa pela PUCRS. Foi professor do curso de especialização em escrita criativa da Universidade Feevale e é editor do selo O Grifo. Como escritor, teve textos publicados em diversas revistas e antologias, e é autor dos livros de contos O Jardim das Hespérides (pré-selecionado no Prêmio Sesc 2016 e finalista do Prêmio Minuano 2018) e Animais diários (finalista do Prêmio AGES 2020), e do romance de terror A Floresta, todos eles publicados pela sua própria editora.

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O que é literatura?

Literatura é o entretenimento das pessoas desoladas.

O que é escrever ficção?

É trazer para o coletivo o universo imaginado pelo autor, dando sentido a ele por meio das palavras ou das histórias. É a expressão de uma angústia criadora.

Vocação, talento, carma, destino…..o escritor é um predestinado a carregar adjetivos que tentam justificar o ofício?

De certa forma, sim. Não gosto de romantizar a escrita, pois é um ofício como qualquer outro, que exige dedicação, formação, treino e trabalho contínuo, mas toda a atividade de natureza artística ou criativa necessita de certa dose de vocação e talento. Ser escritor depende da necessidade ontológica de ser escritor, ou seja, alguém precisa querer muito ser escritor para escolher este caminho, que não trará nenhum benefício a curto prazo. Não acredito, porém, em dom inato. Todo o talento e vocação são adquiridos com estudo e prática.

Qual o melhor aliado do escritor?

A leitura e a prática, juntas, em primeiro lugar. Em segundo, o desejo incontrolável de escrever. Em terceiro, o domínio da técnica.

E qual o maior inimigo?

O idealismo sobre o próprio fazer literário.

Escrever é um ato político? Por qual motivo?

De forma ampla, sim. Como disse Bakthin, a palavra é a arena da ideologia. Escrever literatura, por mais escapista que seja, é uma forma de se posicionar na sociedade, enquanto valores, crenças e ideais. Mas hoje, em uma sociedade culturalmente polarizada, essa noção ampla de política não diz muita coisa. O risco é que a escrita de ficção esteja se confundindo com política partidária, e que a literatura soe panfletária, o que a torna, na minha opinião, bastante datada.

Há também uma confortável ideia de que a literatura possa fazer política apenas por sua força própria. A literatura é, isso sim, um meio transformador que forma futuros agentes políticos. Um livro pode carregar ideias revolucionárias, mas não pode substituir um prato de comida, um salário, uma lei. A literatura pode dar voz a indivíduos e a grupos excluídos e marginalizados, mas precisa estar dentro de um plano político efetivo, para além do círculo literário, que, no geral, sempre pertenceu à classe burguesa. Quem tem fome, quem não tem água encanada, mas também quem é dono de uma oligarquia multinacional, quem de fato move as engrenagens da sociedade, para todas essas pessoas a literatura aparentemente não tem função no dia a dia. Por isso, só escrever livros não basta como ato político. A literatura precisa, acima de tudo, ser acessível.

Quais os aspectos que você leva em conta no momento que começa a escrever?

Hoje em dia o que mais levo em consideração é quais emoções aquele texto irá suscitar no leitor.

A literatura existe para entendermos o começo, o meio ou fim?

Ela pode ter a intenção de ordenar o caos, de tentar dar sentido ao mundo e às coisas, e, nesse sentido, pode buscar inícios, meios e fins. Mas a boa literatura é aquela que faz com que a gente saia da experiência de leitura mais perdido e com mais dúvidas do que quando entrou.

Se escreve para buscar respostas ou para estimular as dúvidas?

Muitos autores escrevem para buscar respostas (para si mesmo), mas quando a pergunta é relevante, não há nada que se possa alcançar que não sejam mais dúvidas.

Criar é tatear no escuro das incertezas?

Criar é acender uma pequena vela para que possamos enxergar o tamanho da escuridão ao nosso redor.

Cite um trecho de alguma obra que te marcou profundamente.

“…antes de chegar ao verso final já tinha compreendido que não sairia nunca daquele quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no instante em que Aureliano Babilônia acabasse de decifrar os pergaminhos e que tudo o que estava escrito neles era irrepetível desde sempre e por todo o sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra.” – Cem anos de solidão, Gabriel García Márquez.

É possível recriar o silêncio com as palavras? Como?

[Daniel Gruber releu a pergunta mais uma vez e, ouvindo apenas o som do seu peito inflando e se contraindo involuntariamente, percebeu que seria impossível responder a essa questão.]

Você acredita que qualquer pessoa pode escrever uma história? Mas, então, o que vai fazer dela escritora, de fato?

Qualquer pessoa tem o direito de contar ou escrever uma história, seja a sua, a de outro ou completamente inventada, mas só conseguirão chegar até o final aquelas cuja paz de espírito dependa intrinsecamente disso. Damos o nome a essas últimas de escritores.

É preciso saber olhar o mundo com os olhos da ficção? O mundo fica melhor ou pior a partir dessa observação?

Para ser escritor é preciso olhar o mundo com olhos de escritor, certamente. Essa busca incansável pela ficção torna o mundo mais tolerável, e deve ser por isso que escritores escrevem.

Todo texto ficcional, mesmo os mais extensos, acaba sendo apenas um trecho ou fragmento da história geral? Digo, a ficção lança o seu olhar para as esquinas das situações, sendo praticamente impossível se ter uma noção do todo?

Creio que sim. Não há como ter noção do todo sequer fora da ficção. Então, de certa forma, a ficção é libertadora quando não se propõe a estar conectada com o real. Aí é que encontra sua maior verdade.

Nesse sentido, uma história nunca tem início, meio e fim?

Como disse certa vez o Luiz Antonio de Assis Brasil, não existem histórias na vida real. A ideia de se contar uma história, isto é, criar uma narrativa, é justamente estabelecer um recorte arbitrário, um início, meio e fim que sirva aos propósitos (claros ou obscuros) do seu autor.

Você escolhe os seus temas ou é escolhido por eles?

Para mim não existe essa distinção. O ser humano não escolhe nada, ele é sempre escolhido. Não tem nada de místico nisso, é uma questão neurológica mesmo. A ideia de livre-arbítrio está cada vez mais sendo desmistificada pela ciência. Ninguém sabe dizer por que gosta mais de um estilo de música do que outro, de uma ideologia política ou de uma crença metafísica. Essas escolhas já foram feitas pelo nosso subconsciente muito antes de que as expressemos. Então, não, eu não escolho meus temas. Escrever é trazer à luz as coisas empoeiradas do nosso porão.

É necessário buscar formas de expressão cada vez menos sujeitas ao cânone, desafiando a língua, tornando-a mais “suja”, para se aproximar cada vez mais da verossimilhança que a história pede? Ou seja, escrever cada vez “pior”, longe da superficialidade de escrever “certinho”, como disse Cortázar, talvez na tentativa de fugir da armadilha do estilo único?

Acho autoritária a ideia de que tenha um jeito certo ou mais apropriado de se usar a língua. É claro que cada época terá suas tendências, principalmente quando certos estilos ficaram saturados. Hoje, muitos autores estão explorando os limites da proximidade entre a linguagem literária e a oral, vernacular. Eu já fiz isso em alguns contos meus, como forma de experimentação, e apenas porque a história exigia. Mas no geral acho que qualquer estilo é válido, desde que usado com consciência.

Quando é que um escritor atinge a maturidade?

Quando o elogio de um leitor não fizer mais cócegas no seu ego.

O leitor torna-se cúmplice do escritor em qual momento?

Há escritores que escrevem quase por encomenda para seus leitores e há outros que escrevem apenas para si. Acho os dois caminhos limitadores, mas, se tivesse que escolher um, escolheria o primeiro. Não há nada mais lamentável do que um escritor que escreva apenas para si, por melhor que seja. Se ele for um gênio, ok, suas ideias e visão de mundo incorruptíveis se tornam fascinantes, mas o número de escritores geniais é muito baixa na história da literatura, até mesmo entre nobéis. Acho que o bom escritor deve chegar a um meio-termo, mantendo sua subjetividade, mas sem se apaixonar demais por sua própria imagem a ponto de não pensar no leitor quando estiver escrevendo. Na maior parte dos casos os leitores é que movem o escritor. Eles são, portanto, cúmplices em todas as etapas do processo criativo.

Apenas um livro para livrá-lo do fim do mundo em uma espaçonave. O seu livro inesquecível. Qual seria?

Liberdade, do Jonathan Franzen.

Qual a sua angústia criadora?

O desejo de me libertar de qualquer autoridade que se imponha contra a minha existência.

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