Por Ney Anderson

Pompeu Porfírio ganha a vida contando histórias para pessoas solitárias que pagam para ouvir os seus relatos quase sempre ficcionais, mas preenchidas com várias situações reais da própria vida. São pessoas miseráveis em suas condições, gente infeliz na maioria das vezes, que veem em Pompeu um criador de mundos possíveis para habitarem os seus sonhos, prazeres e desalentos. 

O livro dos mortos – Uma autobiografia hipnagógica (Companhia das Letras),  de Lourenço Mutarelli, já começa com o personagem Lourenço entrando justamente nesse universo letárgico do sono, evocando Pompeu, o narrador do romance. E já nesse início o leitor se depara com momentos surreais, quase sempre reforçados com alguns detalhes estranhos, desconexos da realidade, por vezes fantásticos, próprios do universo dos sonhos. Pessoas misteriosas rondam toda a ficção. Existe até a estranha interferência de uma gata na história. 

Dividido em duas partes, com oito grandes capítulos, o estado entre a vigília e o sono, aliás, é feito de forma muito potente na obra, com efeitos surpreendentes, pois o personagem central está preso em algumas memórias, demônios que o perseguem a todo instante. Como a luta contra a insônia, a dependência do álcool, os problemas financeiros e, principalmente, a falta de perspectiva com a vida. 

É um romance que tem muito de névoa, da neblina confusa que sustenta Pompeu. Lembranças que se transformam, momentos dele recriados não exatamente da mesma forma que aconteceram, moldados para alimentar a ânsia das pessoas que pagam para ouvir as histórias. Todos os outros personagens, aliás, parecem ser um só, ou vários duplos, que vão se deslocando na narrativa. Depende, no entanto, em qual sonho eles estão naquele momento. Existe um estado de perturbação permanente na história. Pompeu é um alguém que definitivamente rompeu com a realidade, preferindo viver nesse outro lado, no lugar mental, na areia movediça do subconsciente. 

Existe dois lados de cada um de nós. Um bom e um ruim. E vencerá aquele que você alimentar.

O autor Lourenço Mutarelli, vez ou outra, entra também na história narrando em primeira pessoa. Como se fosse o momento que a mente dele sai para respirar um pouco na realidade, retornando logo em seguida ao oceano dos sonhos. Ele (o autor) cita, inclusive, situações reais ocorridas com ele. Inclusive o processo de criação deste livro, as influências que recebeu e foram sendo aplicadas ao que ele queria expressar. Principalmente a origem dos próprios medos, a partir da relação familiar com os pais,  parentes e amigos, da rejeição e das agressões que sofria do pai.

A morte desse pai, o reencontro com esse alguém tão contraditório para o autor, é de uma beleza ímpar, emocionante.  Pompeu, artista frustrado, também tem uma relação paradoxal de amor e ódio com o pai. E ainda existe o incrível ajuste de contas com a mãe por meio desta ficção. 

O leitor, óbvio, acaba sendo sugado para o estado de vigília hipnagógica, a partir da alma nebulosa tanto de Pompeu quanto do seu criador. Aqui, é possível compreender totalmente a arte como fuga do mundo, a criação de algo possível para a sobrevivência. 

A cultura pop sempre esteve presente nos livros de Mutarelli, mas também o lado underground, deslocado das artes, seja em filmes e obras de todos os tipos. E aqui não é diferente. Inclusive com várias referências ao próprio trabalho. 

“Sempre digo que o maior objetivo em meu trabalho, além do fato  de ser o meu tratamento, é me tornar instrumento. Eu me esforço para ser  apenas um instrumento do meu trabalho. Um canal onde algo ancestral se misture com esse meu ser quadripartido e se faça linguagem. Alegoria”

São usadas ao longo da obra dezenas de notas de rodapé sempre que Pompeu faz algum tipo de referência. As notas se tornam quase um romance à parte dentro do oceano onírico do Livro dos mortos. São trechos de outros escritores, como o “Romance luminoso”, de Mario Levrero, lembranças, explicações, relação com amigos etc. Essas notas são essenciais para a compreensão da história, importantes complementos aos pensamentos do narrador. 

Pompeu se vê como um personagem decadente. Carrega o passado, assim como Mutarelli,  com uma estranha nostalgia. Pompeu entra e sai do mundo dos sonhos, mas prefere estar sempre lá. O personagem parece sempre sozinho, mesmo rodeado de seres, porque a grande questão é somente com ele e os seus traumas. 

Digamos que O livro dos mortos, o trabalho mais extenso da produção do autor, com 528 páginas, é uma obra para quem acompanha o autor há muitos anos. O título do romance, inclusive, é uma grande homenagem a um fato real ocorrido na relação do autor com a esposa Lucimar, de como eles se conheceram, mas que se encaixa perfeitamente com a proposta da obra. 

Você precisa entender que certos livros são mais do que livros. Alguns livros são na verdade chaves.

No entanto, quem ler sem ter tido o contato com outros trabalhos, não vai deixar de aproveitar de uma experiência narrativa bastante rica e incomum na atual literatura contemporânea brasileira. 

Claro, o leitor se pergunta o que pode, de fato, ter existido nessa história? Mas isso não importa, pois a linha que divide ficção da autoficção é o um trunfo e tanto quando se sabe trabalhar com esses elementos. E Mutarelli faz isso como ninguém. 

O livro dos mortos é um grande labirinto de espelhos, sem explicações ou saídas lógicas. Ninguém sabe muito bem o que se passa na cabeça do escritor. Nem ele mesmo. No final das contas, o romance não deixa de ser uma espécie de reencontro com fantasmas que povoam o autor. Lourenço Mutarelli aprendeu a expurgá-los para tentar se encontrar. 

Apesar do estado permanentemente hipnagógico na sua vida, o autor desceu ainda mais fundo quando morreu literalmente, duas vezes, mas conseguiu retornar do mundo dos mortos para escrever a sua obra-prima.

“Eu sobrevivi, seria mais honesto dizer. Pompeu responde procurando retribuir toda a profundidade e a mesma honestidade no olhar”.

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