Por Ney Anderson
O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio (L&PM) é um livro publicado em 1998, depois de quatro anos da morte do escritor Charles Bukowski. Os capítulos são pedaços do diário escolhidos por ele mesmo para ser publicado em um único volume postumamente.
A impressão que se tem ao ler a obra é que estamos espiando por trás dos ombros do autor no momento da escrita, tamanha é a sinceridade dos relatos. Bukowski fala aqui sobre literatura, sobre a vida (e o fim dela), o início do sonho em ser escritor e a maturidade, a desilusão com o entorno que cerca o artista, intercalando com passagens da sua rotina no dia a dia, como as bebedeiras (que já não eram como antes), as apostas no hipódromo que ele ia com frequência, não para ganhar, mas para ver “a humanidade em sua desgraça e decadência”, além dos encontros fortuitos com executivos de TV e cinema.
Esse é um livro que fala principalmente sobre a desilusão com as pessoas, nunca com a literatura. As idas ao hipódromo, por exemplo, faziam parte da sua engrenagem criativa, porque ele frequentava para apostar nos cavalos e para ver as pessoas enterradas na lama da existência, tentando a sobrevida com aqueles picos de prazer, em algumas horas por dia. Aquela parcela da humanidade, ele diz, servia como combustível em certa medida para a sua própria criação.
Impossível não ficar entusiasmado com o livro, porque todos nós, escritores, já nos fizemos as seguintes perguntas: para quê estou fazendo isso? Quem vamos conseguir atingir com esse texto? Queremos atingir mesmo alguém com a nossa escrita? Por qual motivo? Vale a pena mesmo? Entre tantas outras indagações eternas, justamente por não sabermos se algum (e qual) retorno acontecerá. Esperamos mesmo algum retorno com a literatura? A reflexão de Bukowski neste livro é muito poderosa, narrada em primeiríssimo plano e sem filtro algum.
Mesmo na loucura do autor, as bebedeiras, o machismo, a misoginia presentes em seus textos e a vida errante que ele trilhou, temos algumas respostas sobre essas inquietações do fazer literário e da importância de tudo isso que achamos da ficção e da arte, que poucas pessoas compreendem para além do lúdico, da viagem nas histórias criadas por autores etc. É uma coisa muito maior que o autor americano reparte com os leitores desse navio perdido no oceano cheio de marinheiros sem bússolas. É sobre a sobrevivência e a tentativa de permanência no mundo caótico, segurando essa única boia que nos resta enquanto artistas.
Entretanto, Bukowski nos mostra que não é uma simples escolha se tornar escritor, mas “ser” escritor talvez seja uma espécie de alternativa para (exatamente) sobreviver em meio ao caos da humanidade e ao caos de si mesmo, sempre escrevendo, jogando e bebendo compulsivamente para não enlouquecer e abandonar totalmente o navio. Ele escrevia, e entendemos perfeitamente isso aqui, não para ficar rico, famoso ou ser reconhecido e aceito, mas para conseguir continuar existindo. Esse entusiasmo corrosivo de Bukowski é uma aula que deixa marcas em quem estiver disposto a entender todo o contexto proposto por ele nas diversas obras de contos, romances e poesias.
A rejeição e o medo do ridículo e da ruína apenas lhe deram mais força. Quanto mais for reprimido, Buk diz, mais forte ele se torna, como uma massa de água forçando um dique. “Não há nada que impeça um homem de escrever, a não ser que ele impeça a si mesmo. Se um homem quer realmente escrever, ele o fará. Não há perdas em escrever; faz seus dedos do pé rirem enquanto você dorme; faz você andar como um tigre; ilumina seus olhos e coloca você frente a frente com a Morte”
Mergulhamos com o autor nesse fundo do poço de perspectivas variadas, dependendo do ponto de vista por onde se queira olhar, onde os dois momentos mais felizes, como ele relata algumas vezes, eram bebendo ou escrevendo
São muitos os recados em forma de “antiajuda” (o sobrinho realista da autoajuda) que Buk passa nesse livro de pouco mais de 160 páginas, como dizer não ter problema algum passar o dia sem fazer absolutamente nada, gastando as horas com coisas inúteis. O que não pode acontecer, segundo ele, é gastar todas as horas, todos os dias. Ao menos um tempo deve ser utilizado para algo verdadeiramente útil, como escrever e criar. “Acho que tirar a minha bunda daqui me força a olhar para a Humanidade, e quando você olha a Humanidade você TEM que reagir. É um excesso, um contínuo espetáculo de horrores. Sou um tipo de estudante. Um estudante do inferno”.
Nada em Bukowski é gratuito. É por vezes confuso, por tudo nele sair num jorro compulsivo, por ter vivido, quem sabe, em outra dimensão. Ele diz nas tortas linhas de O capitão saiu para o almoço… que é preciso ser sincero consigo mesmo, antes de qualquer coisa, antes mesmo de começar a escrever qualquer linha. A ficção para Bukowski fazia parte de uma importante engrenagem que o mantinha com gás para continuar acreditando na própria redenção. Não para os outros, mas para si mesmo. Através de uma linguagem humanizada, suja, e por isso mesmo, mais acessível, com os pensamentos iluminados e escritos com a essencial simplicidade tão característica da sua produção. “Ao escrever, você deve deslizar. As palavras podem ser distorcidas e instáveis, mas se deslizam, há um certo deleite que ilumina tudo. O escrever cuidadoso é mortal”.
“Escrever também é meu gato. Escrever me faz enfrentar as coisas. Me acalma. Por algum tempo, pelo menos. Daí, meus fios se cruzam e tenho que fazer tudo de novo. Não consigo entender os escritores que decidem parar de escrever. Como eles esfriam?”.
Com o passar dos anos, Bukowski fala que as palavras ficaram mais simples e sutis, porém mais quentes, sombrias, cruas até o osso e bastante pessimistas. Apesar de tudo, ele era alguém que gostava de estar vivo, escrevia ouvindo música clássica e curiosamente não gostava de rock, como era de se supor, embora lido por cantores desse estilo, também por bandidos e loucos.
“Escrever é quando voo, escrever é quando começo incêndios. Escrever é quando tiro a morte do meu bolso esquerdo, atiro-a contra a parede e a pego de volta quando rebate. Mas a dor não cria a obra, um escritor, sim”.
A idade deixou o autor mais ácido nos pensamentos. Acompanhamos os relatos sobre os relacionamentos do autor com os poucos amigos, com as mulheres, a rotina na escrita, (e a forma para ele “correta” de escrever), a sobrevida que o texto lhe deu, a substância principal para continuar seguindo por um mundo povoado de gente cada vez mais sem graça, principalmente habitado por escritores e poetas que não tinham nada a dizer de verdadeiramente original (“Os poetas, os novelistas, os escritores de contos, não. Uma gangue de fajutos. Existe alguma coisa em escrever que atrai os fajutos”.). A convivência com Linda (a esposa), as idas ao hipódromo, a (péssima) relação dele com a indústria do cinema americano etc, também são esmiuçados na obra.
“Poucos escritores gostam do trabalho dos outros escritores. Eles só gostam deles quando morrem ou se já morreram há muito tempo. Os escritores só gostam de cheirar a própria merda. Sou um desses. Não gosto nem mesmo de falar com escritores, de vê-los ou, pior, de ouvi-los. E o pior é beber com eles, se babam todos, realmente são lamentáveis, parece que estão procurando pela asa da mãe.”
Ainda que a falta de entusiasmo lhe tirasse por vezes a vontade de continuar criando, ele criava mesmo assim, por amar a escrita. E reafirma algo muito interessante, principalmente para esses nossos tempos de redes sociais, onde o escritor precisa ser um showman para ser aceito e conseguir vender o próprio livro: não há muito o que dizer. Existem muitas coisas para se escrever, mas não para se falar. “Eu sempre disse que o trabalho do escritor é escrever. Cada nova linha é um começo e não tem nada a ver com as linhas que a precederam. Todos começamos como novos, a cada vez. E, é claro, isto não tem nada de sagrado. O mundo pode viver muito mais facilmente sem livros do que sem encanamentos.”
Sentimos entusiasmo quando é a mensagem é sincera. Alguém falando de literatura (e da vida enquanto escritor) dessa forma tão simples e, ao mesmo tempo, poderosa. Ele, por exemplo, recebeu muitas cartas ao longo da vida, de pessoas que disseram que os seus livros salvaram suas vidas, “mas não escrevi para isso, escrevi para salvar a minha própria vida”, diz. Em um trecho ele comenta adorar Hemingway, mas sente nas palavras do autor uma luta constante. Gosta mais, segundo ele, quando um autor escreve simples, conseguindo se apoderar do leitor. Em relação a Hemingway, Bukowski diz entender o texto do autor, porque “quem escreve de pé às seis da manhã não tem senso de humor. Quer derrotar alguma coisa. Cansado”.
“Depois que você lê uma certa quantidade de literatura decente, simplesmente não há mais nada. Nós mesmos temos que escrever. Não há entusiasmo. Tudo mais que leio parece tão… usado… é como um estilo reconhecido. Talvez eu tenha lido demais, talvez eu tenha lido por tempo demais. Também, depois de décadas e décadas escrevendo (e escrevi um monte), quando leio outro escritor acho que posso dizer exatamente quando ele está fingindo, a mentira salta aos olhos, as resvaladas untuosas… Posso adivinhar qual será a próxima linha, o próximo parágrafo… Não há brilho, emoção, risco. É uma tarefa que aprenderam, como consertar uma torneira que pinga”.
Bukowski inaugurou um estilo de linguagem seca, direta, fluída, repleta de palavrões, tratando de questões cotidianas muito focadas na desilusão e na desesperança. Ele mergulhava na ficção para encontrar e (nos passar) uma clareza sobre a vida como poucos conseguiram. O mais interessante é que é uma leitura muito cruel e pesada, mas que se lê com enorme facilidade. “Acho que estar nesta confusão me ensinou a deixar a frescura de lado quando escrevia. Claro, se não há nada dentro de você, não importa”.
Charles Bukowski não foi o melhor dos escritores, muito menos um ser humano dos mais louváveis, mas os relatos presentes em O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio apresentam alguém que não estava em busca da aceitação pública. Ame-o ou odeie-o. A única coisa que lhe importava era a escrita. Para ele, Shakespeare não prestava, nem Tolstói. “Talvez haja um inferno, será? Se houver, lá estarei e sabem o que mais? Todos os poetas estarão lá, lendo seus trabalhos e eu vou ter que ouvir.”
O escritor escreveu por décadas em quartos apertados, dormindo em bancos de praça, sentado em bares, trabalhando em todos os empregos definidos por ele como idiotas, enquanto escrevia e escrevia exatamente como queria e achava que devia. Escrevia do jeito que queria e sentia que devia. Em situações perigosas com os homens, com as mulheres, com os carros, com as apostas, com a bebida e a fome, em cima de latas de lixo, com qualquer coisa que alimentasse a palavra. “Ainda escrevia para não ficar louco, ainda escrevia para explicar esta maldita vida para mim mesmo”.
Para ele, todo o passado não significava nada. A reputação não significava nada. Tudo o que importava era a linha seguinte. E se a próxima linha não surgisse, estaria morto, mesmo que, tecnicamente, estivesse vivo. Escrever era ao mesmo tempo fuga, divertimento e libertação.
Se pudéssemos definir Charles Bukowski em poucas linhas, talvez o correto seria dizer que ele viveu na corda bamba, se equilibrando, no limite, com o corpo e a mente carregados de adrenalina e perturbação. “Não estou competindo com ninguém, não tenho ilusões com a imortalidade, não estou nem aí pra ela. É a AÇÃO enquanto você está vivo”.
“Alguns escritores tendem a escrever o que agradou seus leitores no passado. Daí, estão fodidos. A criatividade da maioria dos escritores tem vida curta. Ouvem os elogios e acreditam neles. Há apenas um juiz final do que foi escrito, que é o escritor. Quando é influenciado pelos críticos, editores, leitores, está acabado. E, é claro, quando for influenciado por sua fama e sua fortuna, você pode mandá-lo flutuando rio abaixo junto com a merda”.
Belo comentário, dissecou, se pode ser feito, o autor, que reluta o tempo todo em ser ele mesmo. Quem embarcar neste navio, com certeza, nascerá de novo.
Como grande admirador da obra do Bukowski, gostei demais desse texto e vou ler o livro. Bukowski certamente não foi “o” maior escritor, mas, na minha opinião, foi um dos maiores, justamente por ter inaugurado um estilo próprio. Eu, particularmente, valorizo mais a originalidade do que a excelência.