Foto: Paula Johas

Por Ney Anderson

Encerrando o Compêndio Mítico do Rio de Janeiro, formado por cinco romances policiais (O trono da rainha Jinga, O senhor do lado esquerdo, A primeira história do mundo e A hipótese humana) ambientados em cada século da história carioca, o escritor Alberto Mussa lança A Biblioteca Elementar (Record), focando a trama no início do século 18. Logo na abertura são apresentados dezenove personagens que residem na Rua do Egito (hoje Rua da Carioca), onde se passa o enredo, povoada por ciganos que vivem em busca de ouro, do contrabando marítimo, entre outras atividades ilícitas.

O crime acontece já nas primeiras páginas, testemunhado por uma misteriosa mulher que está saindo do cemitério em direção à rua quando vê um dos moradores da rua sacar uma arma e disparar contra outra pessoa, também residente do local. Não há segredo, sob a ideia do assassino escondido, porque ela conhece (e o leitor também fica sabendo) o autor do crime e a vítima. O que se busca a partir disso é a motivação que ocasionou o fato.

Não existe um investigador clássico neste romance. Esse papel quem faz é o narrador. Existe uma grande explanação sobre a história da Rua do Egito e a chegada dos ciganos ao Rio de Janeiro. A capa, inclusive, faz referência aos baralhos. O narrador faz a abertura com passagens centrais na trama, cenas e situações, e toda a ambientação do início do século 18, precisamente na Rua do Egito.

Com o recurso de apresentar os fatos diretamente para o leitor, lembra muito a maneira que os narradores de Machado de Assis conduzem as histórias, o texto vai fluindo tranquilamente, mesmo com os excessos de informações. Sobretudo, quando as relações dos personagens são explicadas, os envolvimentos deles e a trajetória de cada um até o dia do crime.

O romance é todo feito com o Rio de Janeiro no começo da sua história. Mas sem o ranço didático que o enredo pudesse sugerir. Embora existam muitas informações, elas estão presentes para dar veracidade ao que está sendo contado. O narrador está falando sobre o crime ocorrido em 1733, mas talvez esteja muito afastado no tempo da história. Inclusive, analisando a própria obra. Dizendo, por exemplo, o que pode ou não ser dito num romance e explicando as opções por determinadas cenas. Para deixar, segundo ele, o relato mais próximo do real. Do fato.

O livro não se centra apenas em uma história. O leitor vai sendo apresentado às sub-tramas para compreender todo o enredo e mostrando a atuação de inquisição na cidade, contra pessoas comuns e minorias, como os ciganos que povoam este romance e toda a sua mitologia das adivinhações do futuro pelas cartas do baralho.

Como um bom romance policial, no entanto, tudo isso é para jogar uma cortina de fumaça no que se pretende falar. O crime. Ou melhor, não apenas quem cometeu (porque já se sabe desde o início), mas o porquê. Um jogo de espelhos para ludibriar o leitor, induzindo caminhos, através do hábil narrador que também é o autor da obra.

O romance faz um grande preambulo, mostrando a origem de cada personagem e a formação do Rua do Egito, como também os seus moradores. Vai e vem na cena do crime. O autor mostra o papel de cada personagem, a relação deles com o morto e o assassino.

Todas as possibilidades por trás do crime são “esticadas” em todos os detalhes possíveis. A maneira como os personagens são apresentados, cada um com os seus dilemas, é o que segura a narrativa. Porque a surpresa do assassinato já não existe para o leitor. A lógica é invertida para os próprios personagens. Então, traçar um painel dramático de todos os personagens para apresentar os porquês por trás do crime, foi algo muito acertado. Justamente para fazer a ideia do Compêndio Mítico ter alguma lógica. Principalmente no encerramento, mostrando um Rio de Janeiro que não existe mais. Dificilmente, neste romance, isso seria possível se a narrativa levasse o leitor para a preocupação em saber quem é o assassino.

Mussa faz uma excelente construção de personagens, dentro de um romance labiríntico, com o narrador soltando pequenas chaves para a compreensão da história, com mapa e elementos que compõem a narrativa.  O livro é a gestação do assassinato ao contrário. Mas o grande mistério mesmo reside no próprio título, A biblioteca elementar, que pode ser qualquer uma. Essa é a chave.

É o tipo de romance policial que o leitor já fica sabendo quem foi o assassino. Mas os personagens da trama não. É justamente através dessa premissa que se desenrola todo o enredo. É como se, grosso modo, o leitor acompanhasse as descobertas de cada personagem, da mesma forma que o autor da obra também está descobrindo.

É um grande romance, porque não é só o crime o principal motivo do livro, mas todos as perguntas que o cercam. As motivações. É uma prosa muito limpa, mas cheia de labirintos. Ler o Compêndio Mítico é descobrir também a história do Rio de Janeiro, e do Brasil, mas de uma forma totalmente palatável. A reconstrução histórica é embalada por um belo trabalho de ficção que se apropria desses elementos para fazer o leitor viajar no tempo. Sem pressa de voltar.

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