Por Ney Anderson
Como surge um conto, uma novela ou romance? Essa pergunta não é fácil responder. Geralmente cai-se no clichê barato da inspiração, onde tudo aparece como num passe de mágica. No entanto, muitos grandes escritores já afirmaram que o ato criativo só surge através da leitura diária e atenta. Um dos mais influentes autores do nosso tempo, o Nobel Mário Vargas Llosa, escreveu obras clássicas para analisar a literatura, como Orgia Perpétua, uma teoria crítica sobre a construção de Madame Bovary, de Flaubert, e Cartas a um jovem escritor. Gabriel Garcia Márquez foi outro Nobel que também falou bastante sobre o ato criativo. Gabo, inclusive, publicou na década de 1980 o livro Como contar um conto, esgotado desde então. Edgar Allan Poe, criador do gênero policial, analisou o fazer literário através da Filosofia da Composição, onde fala sobre autores de sua época e explica como escreveu o Corvo, seu poema mais famoso.
Foi pensando nessas questões que os escritores Cícero Belmar, Cleyton Cabral, Gerusa Leal, Lucia Moura e Raimundo de Moraes resolveram se reunir para conversar, opinar sobre seus textos e os textos dos outros, fazer exercícios e tentar aprimorar seus estilos. Nascia aí o grupo recifense Autoajuda Literária. Conversas regadas à petiscos, goles de vinho, dão o tom da suavidade dos encontros quinzenais do grupo, que já acontecem há seis anos. Para marcar a data vão lançar o livro: Escrever ficção não é bicho-papão. Os integrantes do grupo são autores premiados e com bastante experiência em oficinas de escrita criativa. Escrever ficção não é bicho-papão foi aprovado pelo Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura) e chega às livrarias com uma proposta inédita no Brasil, no que se refere às dicas de como dar os primeiros passos numa carreira literária. São seis autores (cinco do Autoajuda e o autor convidado Fernando Farias) com seis estilos diferentes, como se dentro do mesmo livro estivessem outros – tudo isso acompanhado de um audiobook nas vozes de Hilda Torres e Marcos Sugahara.
Autores clássicos como Machado de Assis, Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Jorge Amado, Pablo Neruda, George Orwell e Nelson Rodrigues são citados na obra. Mas também existe espaço para os autores contemporâneos como Rubens Figueiredo, Bráulio Tavares, entre outros. Grande parte dos textos reunidos no livro foram publicados aqui no Angústia Criadora em 2013, dentro do projeto Eu escritor. De onde partiu a ideia que originou a publicação do Escrever ficção não é bicho papão. Belmar, Raimundo, Fernando e Gerusa fizeram parte do projeto inicial. Lúcia e Cleyton entraram logo em seguida.
Eles mostram que para escrever ficção é preciso antes de tudo ser um leitor. Ler com bastante atenção, observando os mínimos detalhes, quase como um cientista, para entender as opções do escritor por determinadas cenas, frases e palavras. Escrever não é simples. Se fosse, todos escreveriam, mas é perfeitamente possível criar histórias se você for obstinado. Os livros clássicos são bons companheiros para os futuros autores, eles apresentam boas ideias de enredo e construção de personagens. Machado de Assis é um desses excepcionais escritores que todos deveriam ler sempre, em qualquer momento da vida, por que ele utilizou as melhores técnicas.
Um leitor que pretende ser um criador precisa ficar atento aos recursos técnicos, justamente por conta dos efeitos na narrativa. Mas antes de tudo é preciso ter a noção do que se quer escrever. Mesmo que isso seja confuso no princípio. Na literatura não existe milagres, as coisas não acontecem da noite para o dia. A maturidade demora um pouco. Cada escritor tem seu modo pessoal de produzir ficção. Existem aqueles que passam horas e horas na frente do computador, e também os que escrevem apenas duas páginas por dia e sentem-se realizados. Isso, contudo, não importa tanto no primeiro momento. O importante mesmo é criar repertório, que só é conquistado com leitura constante, e a partir daí vem as ideias para escrever o texto ficcional. É algo que surge também da observação atenta, com sensibilidade, das coisas que acontecem todos os dias ao nosso redor.
Diferente da inspiração, que não existe, as ideias vêm do esforço intelectual. Só depois disso é que a história vai sendo criada, pouco a pouco. As boas ideias, contudo, não acontecem sempre. Por isso é necessário anotar, nem que seja uma frase, para não esquecer. O fato de anotar as ideias serve de exercício prático para o que pode ser chamado no futuro de literatura. E de onde surge essa primeira chama para a concepção literária? A resposta é simples, mas não definitiva: de qualquer lugar. Lógico que essa afirmação é muito subjetiva, mas as ideias podem aparecer através de uma foto, cenas do cotidiano, de alguma música ou de uma conversa no ônibus. Para extrair ficção das coisas, até então banais, não basta apenas ficar observando. Desde que o autor saiba “sentir” o que vê, ter sensibilidade, será possível sair do conforto da sala de leitura e se arriscar escrevendo as próprias histórias.
Para isso é necessário disciplina e responsabilidade. O que não quer dizer que o ficcionista tenha hora certinha para escrever, seja limpinho ou tome chá de camomila. É a determinação em ler muito, examinar cada palavra, ler o que não foi escrito, ou dito implicitamente, apenas nas entrelinhas, o que está por trás das palavras, as escolhas e os pensamentos do escritor. Sempre um detalhe pode ser melhorado, uma cena retirada, um diálogo inserido, para o bem da própria história que está sendo contada. Essas questões são apenas a pontinha do iceberg dentro de uma oficina literária. Elas servem de suporte para os que pretendem sair da leitura comum. As ferramentas existem, nem sempre são claras, cabe ao aprendiz de escritor descobrir as nuances da literatura, pondo-as em prática.
Se escreve quase sempre por impulso. Ficamos felizes quando a história começa a ser desenhada no papel, algo que seria praticamente impossível algum tempo antes, na fase do amadurecimento literário. Aos poucos o escritor vai surgindo, a cortina vai sendo aberta, mostrando um horizonte de enormes possibilidades. No entanto, é preciso calma. Muito calma. Graciliano Ramos disse certa vez que o escritor tem que ser igual às lavadeiras. Que é preciso, antes de tudo: “lavar, torcer, molhar novamente, torcer mais uma vez, bater o pano na pedra e, só depois, quando não houver nenhuma sujeira, e nem um pingo de água, colocar o pano no varal para secar”. Nos romances de Graciliano as palavras são exatas, sem espaço para sobras desnecessárias. Um estilo único, que foi conquistado depois de muito suor.
Escrever ficção não é bicho papão .. não é uma oficina literária propriamente dita, mas uma conversa sobre literatura, ou sobre a paixão que os autores do grupo nutrem por ela. De qualquer forma, a tradição por oficinas em Pernambuco é bastante forte, sobretudo por conta do premiado escritor Raimundo Carrero. Ele foi um dos primeiros autores no Brasil que se interessou pelas questões técnicas da obra de arte literária, mostrando sempre que ela é uma companheira exigente, pede empenho, exclusividade e amor. O título marca também o início das atividades do Autoajuda Literária como editores. É a primeira publicação das Edições Geni. O selo deverá seguir uma linha editorial investindo em livros em formato pocket e a preços mais acessíveis.
Os escritores apresentam olhares distintos sobre o tema da criação, mas que se complementam, tornando-se uma só peça no quebra-cabeças da composição literária. Todos já têm experiência na produção ficcional, lançaram livros, por isso sabem o que dizem, são escritores de reconhecido talento e criatividade. No final da obra, o leitor vai poder conferir a produção dos seis autores, cada um enriquecendo o texto com comentários sobre o enredo, como surgiu a ideia e outros detalhes.
Você não será o mesmo depois dos conselhos do Autoajuda Literária. Vai andar por aí atento, observando, anotando tudo e, sobretudo, lendo mais, de forma realmente crítica. Só então vai perceber que escrever ficção nunca foi um bicho papão.
Serviço
Lançamentos do livro Escrever ficcção não é bicho-papão – Edições Geni.
Dia 14/06 às 18h, no Sesc Santa Rita, bairro de São José.
Dia 16/06 às 19h, no Pátio Café, Av. Rui Barbosa 141, Graças.
O livro vem com audiobook nas vozes de Hilda Torres e Marcos Sugahara. Capa e arte do selo: Java Araújo.
Preço: R$ 25,00