Foto: Renato Parada

Por Ney Anderson

No seu trabalho mais ambicioso e maduro, o paulistano Santiago Nazarian trata do genocídio armênio, ocorrido durante a primeira guerra mundial, mas intercalando a história com os dias atuais. Precisamente em 2017, quando o cuidador de idosos Cláudio é contratado para trabalhar com o senhor Domingos, morador do bairro dos Jardins, de classe média alta em São Paulo. Chegando na imponente mansão, o rapaz se depara não apenas com mais um trabalho, mas com a história de vida de um homem nonagenário (ou mais), que pode ter sido um dos sobreviventes do massacre praticado pelos turcos, matando por volta de 1,5 milhões de pessoas.

Cláudio é um jovem gay de 22 anos, de origem indígena, com muitas questões mal resolvidas, tem a sua rotina modifica com esse incomum paciente, que lhe oferece uma experiência completamente diferente. Num tom ainda mais refinado dos signos que lhe fizeram um representante forte da literatura pop, Santiago usa em Fé no Inferno (Cia das Letras) o aspecto histórico para apresentar uma página tenebrosa da humanidade, mas não necessariamente de forma didática.

A narrativa acontece em dois tempos. O trabalho de Cláudio no novo emprego. E a história do genocídio, a partir da leitura de um livro da biblioteca do patrão que ele começa a ler. O enredo deste livro é sobre as memórias de um menino armênio de oito anos, que consegue fugir do genocídio. No começo, Cláudio não entende se o livro se trata de uma fábula satanista, um conto de fadas ou romance de guerra. E em determinado momento começa a achar que a história foi escrita pelo idoso que ele está cuidando. O livro serve de contraponto com a memória cada vez mais deteriorada de seu Domingos. A imortalidade através de um texto. Mas até que ponto aquilo era imaginação ou uma realidade inventada. A senilidade do velho começa a confundir Cláudio. A graça do livro reside justamente na dúvida, que permanece até o fim.

Cláudio vai sendo afogado na perversidade da narrativa do livro, que tem elementos da fabulação e do fantástico, fazendo-o reconhecer naquelas páginas algo muito pessoal e íntimo, do próprio percurso acidentado que o fez chegar até ali. Mas na história do garoto, no caminho que ele faz, se estabelece algo ainda mais cruel, sobretudo nas cenas iniciais (e pesadas) do massacre da aldeia que o garoto mora com os pais e o irmão. Principalmente por ele ser uma criança narrando as atrocidades, o peso narrativo é ainda maior.

Assim como o menino da história que fugiu da carnificina, o cuidador também é um sobrevivente (ainda que guardada as devidas proporções), por ser gay, pobre e descendente de índios, também parte de uma minoria perseguida no Brasil atual.

Fé no Inferno é uma grande conversa íntima com o leitor sobre sobrevivência. Até o próprio ofício de cuidador de idosos se torna um ponto de reflexão importante na obra. Porque Cláudio não se acha capaz, mesmo sendo capaz até demais de fazer o trabalho, já que sempre teve uma vida servil. No entanto, uma frase que ecoa da boca de Domingos diz muito sobre as duas histórias. “Liberdade é algo a ser conquistado…”

O romance funciona com as transições entre os dois tempos acontecendo sem atropelos ou marcações. Isso dá uma fluidez a narrativa, estabelecendo a imersão na leitura de ambas as histórias.  O passado cruel de Cláudio, de qual ele não se orgulha, mas que acabou sendo a única alternativa possível para lhe dar um ponto de virada, a vida profissional, as dificuldades de sempre, moldaram quem ele havia se tornado. Da mesma forma que o personagem do livro que ele lê vai amadurecendo a partir das atrocidades que encontra no caminho, tendo que escapar dos horrores da guerra por meio de uma saída fantasiosa da própria mente, contando para si mesmo contos de fada para a fuga da realidade perversa.

Porque são cenas pesadas de corpos boiando no rio, odores da carne humana queimando impregnando as narinas, bebês mortos, mulheres violadas. Incontáveis corpos incompletos, mutilados, espalhados pelos campos, abertos por curdos, devorados por animais. Mulheres sem seios, homens sem pênis, pênis sem corpos, seios em esqueletos. O exílio forçado, mesmo ainda na própria terra, quando teve que se submeter ao povo dominante, onde meninos viravam escravos e as meninas levadas para haréns.

“Às margens do açude, eu tentava me soltar das folhas e algas que haviam me prendido. E logo percebia o que eram: tranças, cachos, mechas de cabelo. Era esse o propósito do açude. Para isso ele ainda tinha serventia. Meus pés estavam amarrados pelos cabelos dos armênios afogados naquelas águas”

Cláudio utiliza o game portátil PSP, jogando Monster Hunter Freedom Unite (não por acaso é sobre caçar monstros e acabar com perigosas criaturas) e o próprio livro que está lendo, como válvula de escape, uma saída, do mundo que o cerca.  E diz muito da aceitação em ser gay, em um mundo que parece sempre retroceder, mesmo com todos os direitos adquiridos. O romance se passa na pré-campanha política de 2017, com candidatos com opiniões homofóbicas e extremistas sendo referendadas por uma parcela gigante da população brasileira. Que fique claro.

“Num bom livro, um bom game, uma boa série, ansiamos por aquele capítulo‑fase‑episódio final, assim como queremos que ele nunca acabe. Em todo game, ou em quase todo, mesmo nos piores, há uma forma derradeira de morrer. Você pode ser muito habilidoso, pode até ter vidas infinitas, pode salvar e voltar mais tarde… Mas quando se acaba o jogo, o jogo acabou. Aquela história foi contada. O fim da história é a morte derradeira do jogador. A história de um homem só termina quando toda a história foi contada. Se trouxermos algo de novo, a história continua. A morte é apenas um capítulo para incrementar nosso percurso pessoal”,

Cláudio se apega ao velho. Sente um incomum afeto pelo patrão, reforçado pelo o que ele acha se tratar das memórias desse curioso homem. Mesmo a realidade dos dois sendo aparentemente antagônicas, a convivência entre eles dá um caráter de pertencimento a Cláudio. Porque ele começa a entender a Armênia não apenas como um país, mas como um povo. É justamente o menino de oito anos que escapou da morte, quem diz muito sobre quem é o velho Domingos. Alguém que perdeu a ligação com a terra, mas não com a própria fé. E ainda por ele ser velho branco, heterossexual, rico, a classe dominante no Brasil, mas que tinha como ninguém o conhecimento do que era ser uma minoria, um cidadão de segunda classe, assim como Cláudio.

“O que fazia de um armênio um armênio? Assim como tendo nascido e crescido na Turquia — ou no Império Otomano —, o que o diferenciava de um turco, além da língua, a religião, a cultura? Porque é isso que faz um povo, Cláudio! A história, a cultura, a língua. Se isso desaparece, o povo desaparece.”

No decorrer da trama, Cláudio entende que o que deveria ser uma biblioteca sobre a história dos armênios, acabou se apresentando para ele como a história de um único homem, sob diversos pontos de vista. Um livro dividido em centenas de volumes. O leitor vai sendo levado sem ter ideia para onde a história está indo. O livro dentro do livro é como se fosse o próprio sinônimo de vida para o velho. Como se ao ultrapassar as páginas, onde o menino é perseguido numa sociedade pós-apocalíptica, o elixir da sua permanência no mundo fosse se apagando, e por isso ele possivelmente precise sempre escrever várias versões da própria história para que ela nunca acabe.

O universo de Cláudio, e as percepções que ele tem da vida, começam a interferir no livro que está lendo, e de alguma forma ajudando a mantê-lo vivo. Como ele mesmo diz em determinado momento, que a sua era uma nova visão do Inferno, o inferno em uma nova versão, tropical e agressiva.

Até ambientação do casarão é emblemática, por se tratar de um local com ecos de outros tempos, de pessoas que já morreram, só restando uma fina representação do passado, personificado na figura de um único homem. A permanência possível desse passado para os novos tempos é justamente a biblioteca, que não deixa de ser a continuação do mesmo livro.  O mesmo passado que estava ali, sempre a assombrar o Cláudio.

Fé no Inferno fala mais sobre raça, povo, do que propriamente do lugar enquanto território geográfico. O importante é justamente o percurso que ambos fizeram até chegar ali. O não-lugar que os personagens centrais das duas histórias ocupam, e a dor que eles carregam, servem de ponto de encontro, a linha invisível, que os conecta.  Na parte histórica, por exemplo, o garoto vaga acompanhado por visões de pessoas mortas, fantasmas destroçados que lhe cruzam o caminho e as lembranças das cenas pesadas de estupros e assassinatos e todos os tipos de horrores. Já no lado atual, Cláudio diz para si mesmo que “o sexo sempre fora razão para sofrimento, o sofrimento sempre lhe fora sexual — ele era homossexual, afinal, e ser homossexual não era isso, aprender a amar a dor”. Uma sociedade, portanto, que o renega, por conta da orientação sexual e étnica.

Se o livro pudesse ser definido em apenas uma palavra, sem dúvida nenhuma seria “resistência”. Ratificado por uma frase-chave do romance de Nazarian: “um povo todo era exterminado, mas as pessoas continuavam a encontrar motivos para rir”.

Em um tom fortemente bíblico, justamente por ser a armênia a primeira nação cristã, o paraíso é uma grande alegoria em Fé no Inferno. A representação desse simbolismo é muito forte e significativa nesta obra de Santiago Nazarian. O local de onde o homem foi expulso por Deus e mandado para vagar por uma terra desconhecida e por isso mesmo precisou saber lidar com a incerteza do seu trajeto. Mas, como diz a criança que fugiu da guerra, sofrendo tanta dor durante o percurso, tendo que aceitar o destino que foi lhe imposto, “quem está no inferno fica amigo do fogo”. Que ninguém tenha dúvida, portanto, que o inferno, por vezes, pode ser muito bonito.

“Quando se faz parte de um grupo indesejado, num país em guerra, tudo o que se pode querer é fugir, seja no espaço ou no tempo — escapar para novos cenários ou apagar a consciência o bastante para que tudo passe, a segurança se estabeleça, ou para que suas pernas ganhem corpo suficiente para tirá‑lo dali”.

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