Por Ney Anderson
Os escritores almejam, em geral, traduzir com palavras suas visões de mundo. No fundo, é a busca por essa linguagem certa, que faz o autor ter êxito ou não. Essa procura, muitas vezes, não é tão simples quanto parece, tornando toda a vida de quem quer escrever um livro de fôlego, uma investigação incessante e tortuosa. A experimentação ao longo dos anos é determinante para se chegar ao ponto ideal, no clímax certo, com uma visão totalmente particular sobre determinado assunto. Isso é que pode ser chamado de estilo. O novo livro do espanhol Javier Marías, Os enamoramentos (Cia das Letras, 344 páginas, R$ 49,50) surge exatamente com essa visão nova sobre algo tão batido e falado na literatura mundial que é o amor.
Maria Dolz é uma editora de livros bastante solitária, que detesta a rotina que tem. Todas as manhãs ela vê um casal (Miguel e Luisa) tomando café próximo do edifício onde trabalha, e percebe o quanto eles são interessantes, justamente por conta dos enamoramentos que carregam, que é aquela fase que antecede o amor e a paixão. O livro vai mostrando que há vários enamoramentos ao longo da vida, e o primeiro de Maria é exatamente essa relação de observação do casal, é a partir daí que ela se vê naquela relação perfeita, imaginando como seria se fosse ela e não a outra que estivesse ali. Isso dá força para que todos os dias ela possa fazer o trabalho que detesta. Ainda no primeiro capítulo Miguel Desvern é assassinado por um flanelinha que tem problemas mentais. Maria sai de espectadora, e narradora da história, à personagem, quando se aproxima da viúva para saber como tudo aconteceu.
Luisa, a viúva, faz toda uma entrega sobre o relacionamento que ela tinha com o marido, em uma única voz, quase como um monólogo. Com longas falas e várias digressões que existem por todo o romance, ficamos nos perguntando onde tudo isso vai levar. É nesse momento que a genialidade de Javier Marías começa a aparecer. Ele lança uma discussão sobre a verdade enquanto tentativa de explicação dessa suposta verdade, ou tentativas de reafirmá-la, deixando o leitor em dúvida, talvez o maior mérito da obra esteja justamente nessa proposta dúbia. Ao lado dessas interrogações dos enamoramentos da vida, ele vai jogando a questão da ausência da morte e da corrosão pela ação do tempo. As páginas de contemplação dessa perda e a tentativa de compreensão da morte, e até quando ela se faz presente na vida das pessoas, diretamente ligadas com ela, é a ideia que está por todo o romance. O livro trabalha a tentativa de convencimento para explicar ações tão cruéis, quase como uma desculpa por uma vida infeliz
A morte de Miguel está envolta em situações estranhas, que são reveladas pouco a pouco nos embates entra uma falsa verdade e as reais escondidas por meio de fatos pouco revelados. O interessante no livro são as longas falas, que em momento algum torna-o cansativo, muito pelo contrário, eles entram com uma precisão cirúrgica. São os personagens que trazem o leitor para perto da história, não só por conta da narrativa em primeira pessoa, mas por mostrar um passado muito bem construído com flash backs, sobre a vida de Maria Dolz e suas próprias questões amorosas e trágicas.
A compreensão da obra surge exatamente por causa das longas falas, subvertendo o sentido de assassinato. A morte, embora trágica, é como um fio condutor para questões existencialistas que não nos damos conta, mas que sempre existiram. Para tentar justificar, ou ser um apoio do romance, o livro O coronel Chabert, de Balzac, um dos episódios da Comédia Humana, que vem encartado esta edição, fecha vários pontos de Enamoramentos. Javier Marías, sempre cotado para o Nobel de Literatura, não criou apenas personagens, criou gente de carne e osso.
Conheça o catálogo da Cia das Letras