Por Ney Anderson
Quando pensamos em animais como alegoria ou metáfora do indivíduo, logo surge à mente escritores como George Orwell, com A revolução dos bichos, e Kafka, com A Metamorfose. Embora antagônicos nos assuntos que abordaram em seus livros, os dois se assemelham justamente no caráter fantasioso em, a partir de figuras não humanas, elevar ainda mais a complexidade humana. Carlos Henrique Schroeder parte desta ideia para mostrar histórias das mais variadas em torno da representação dos aracnídeos como seres, ao mesmo tempo, repulsivos e misteriosos, no seu novo livro de contos Aranhas (Record).
O autor diz na abertura que o trabalho nasceu por conta de uma obsessão dele pelos aracnídeos desenhados pelo pintor e artista gráfico Bertrand-Jean Redon, que em 1881 desenhou com carvão vegetal “A aranha chorando” e “A aranha sorrindo”. Figuras que invadiram o inconsciente de Schroeder em recorrentes pesadelos. A libertação em forma dos contos desta coletânea (32 no total), percorre caminhos que mais parecem conectados por teias invisíveis, mostrando universos múltiplos de personagens presentes em histórias rápidas, por vezes mortais, algumas de finais trágicos, e outras nem tanto.
Assim a coletânea oferece contos como “Viúva-negra”, de desfecho cirúrgico. “De parede”, mostrando a violência implícita nas atitudes ou até mesmo nos pensamentos dos personagens. “Tarântula de botas”, com personagens dissimulados, astutos e pouco confiáveis. “Aranha-lobo”, conto que vai envolvendo o leitor, prendendo a atenção, com figuras bem construídas. “Argíope multicolorida”, apresenta uma situação totalmente inusitada.
São cenas cotidianas, com finais incomuns, trabalhadas por Schroeder de maneira a seduzir o leitor, soltando a narrativa de pouco em pouco, mas puxando a corda (a armadilha) no momento exato. Como no conto “Saltadora”, sobre um tema bastante atual, que é a violência cada vez maior no país. Aqui, uma escola é altamente protegida contra qualquer tipo de barbárie, vigiada por câmeras e monitoramento constante. Mas não apenas isso, esse texto fala ainda de bullying e sobre o curioso caso da personagem que tem sensações afrodisíacas com o próprio sangue.
Em “Cara-feliz ou nananana makakii” acompanhamos a história do motorista particular que por alguns instantes se sente o dono do mundo. Nos contos menores, de meia página, o autor experimenta ainda mais no alcance rápido do clímax, mandando recados diretos. Por exemplo, em “Babuíno comum” é sobre um marido desconfiado de traição. Já no conto seguinte, “Espinho”, é a mulher com voz de criança que atiça a imaginação de homens pervertidos. Ou o personagem depressivo-suicida em “Teia-de-funil”. “Cuspideira” mostra o jovem com diversas oportunidades, mas que decide se voltar para o caminho do crime.
Kafka, citado no começo do texto, é homenageado no conto “Golias-comedora-de-pássaros”. Mas aqui Gregor Samsa se transforma em aracnídeo. “Fio de ouro” mostra a rotina de uma garota de programa, sob o ponto de vista dela.
O autor oferece boas histórias nesta coletânea, com enredos simples, mas muito eficazes. Não é apenas uma prosa urbana, com elementos que transmitem a sensação de modernidade. Os textos são cenas a princípio corriqueiras, mas que escondem truques, de rápidas revelações. As narrativas, na maioria lineares, não escondem o jogo, apresentam bons enredos e mostram o domínio do autor na prosa curta. Já que ele também é um romancista reconhecido.
Ainda que os textos de Aranhas não sejam mirabolantes ou espetaculares, a força está justamente nos breves caleidoscópios formados por personagens à beira de pequenos abismos. No último conto, “Armadeira”, as pontas soltas são unidas, encerrando o livro como um bom romance policial.
Mesmo que as aranhas não estejam no centro das narrativas, como figuras principais dos contos, como o título do livro pode supor, os textos carregam a ideia de metáfora labiríntica das teias que engendram o leitor.
Na fina ironia dos nomes populares dos aracnídeos intitulando as histórias, e seus respectivos termos científicos, se percebe a mensagem subliminar que une os artrópodes com os seres humanos, também pouco confiáveis, sempre à espreita, para garantir a própria subsistência.
“Você vê uma aranha e imediatamente pensa em veneno ou na sua aparência repulsiva. Esquece que ela é carnívora, como você. Esquece também que ela se alimenta de insetos (as menores) ou de ratos e pássaros (as maiores), mas só mata o que pode comer. Aranhas não compram animais ou insetos mortos, não negociam a morte. Não matam por prazer”.