Por Ney Anderson
Todo bom conto que se preze consegue fazer com que o leitor submerja para dentro das suas linhas e só saia de lá no seu desfecho. A experiência se torna mais interessante, no entanto, quando o texto lido não termina apenas no ponto final, ou quando o livro é fechado, mas quando o leitor olha por cima das páginas, já distanciado do que leu, inebriado, ao mesmo tempo ainda cúmplice das narrativas que praticamente vivenciou.
É exatamente essa névoa pós-leitura que provoca o livro O olho do rinoceronte (Tarcísio Pereira Editor), estreia na prosa do poeta pernambucano Frederico Spencer. É uma obra curta, de 28 contos e 75 páginas, que entrega o que propõe. Pequenos relatos de várias vidas, com histórias comuns e inusitadas.
“Tango para Iraci”, mostra uma mulher que mata os parceiros de forma sutil, através de jogos rápidos de sedução, como uma tarântula que tece o casulo da morte. “Nas entrelinhas” personagens fictícios povoam os dias de um suposto escritor. A ficção que invade a vida dele de forma incontrolável. “Dos santos domingos”, um homem fica à espreita da mulher que passa todos os domingos em frente da sua casa. “Para o almoço”, o melhor conto do livro, é a preparação da peculiar refeição que está preparada para a família que chega em instantes.
“A pele” é a narrativa estranha, confusa, com muitas pontas soltas, que apenas dão sugestões do que é. O personagem que, aos poucos, vai literalmente se desfazendo. “Os pés” é o conto mais surrealista de todos, narrando a vida de uma jovem de pés grandes, que sofre bulling, e resolve cortar os dedos para diminuir o seu sofrimento. “Pingo e canivete” é a história de dois amigos de infância, que ganha contornos criminosos com o passar do tempo. “Conceda-me o prazer desta dança” fala da mulher que se apaixona por Geraldo Regaço, um cantor de brega, e acaba se casando com ele. Mas após a união ela precisa conviver com a agenda lotada de shows do marido. Até o dia dá descoberta de um segredo.
“Insolação”, uma espiada, suposição de algo que não avança. Um abrir e fechar de cortina, olhada rápida por entre a fresta da janela entre vizinhos. Oi, como assim?, conto rápido, sobre um recém-nascido que ninguém sabe de onde veio. “A maldição das letras”, o funcionário de uma empresa que já não aguenta a rotina dos dias. No conto “O inventário”, o poeta deixa o emprego para viver exclusivamente da arte. No entanto, a rotina doméstica o impede de criar.
O livro também retrata personagens errantes, periféricos, como o do conto “O poder das armas”, sobre o rapaz que utiliza capuz para realizar assaltos, se tornando um total desconhecido, mesmo a sua prática revelando um astuto profissional do crime. Enquanto ele vive por trás da máscara, outros se vangloriam por terem o rosto reconhecido na mídia. Na mesma linha bandida é “Com berro e saliva”. A opção, no entanto, não é pela gíria gratuita para mostrar a realidade dessas pessoas, mas narrando o estado em que eles se encontram e as opções que resolveram seguir, com ideias de sobrevivência, sendo algozes e heróis ao mesmo tempo, segundo o pensamento deles. Alguns textos brutais fazem parte do universo dinâmico do autor, como o homem que é queimado vivo no conto “Na carne” ou em “Recheio de coxinha”, claramente baseado numa história real, dos canibais de Garanhuns, que matavam as pessoas e faziam coxinhas com recheio de carne humana.

“Amor de plástico”, o relacionamento do personagem com uma boneca inflável. Retrata o aspecto solitário de alguém que se satisfaz com esse tipo de “relacionamento” amoroso.
Esses são apenas alguns exemplos do mural de personagens trabalhados por Spencer. O olho do rinoceronte é aquele tipo de livro que se lê de uma vez só, em pouquíssimo tempo, mas que esconde por trás dessa aparente rapidez histórias surpreendentes e muito bem escritas, que revelam um autor que conhece os meandros da boa literatura. Sobretudo daquela que atinge o objetivo no mesmo instante da leitura. Assim como o canto da sereia, não tem como não ficar seduzido pelo jogo fugaz dos minicontos presentes nesta coletânea.
Como as linhas da mão que terminam a trajetória na culatra de um revólver, só para ficar em Cortázar, os contos aqui reunidos caminham pelo mesmo lugar urgente e objetivo da sua mensagem. Sem muitas firulas narrativas, o que está no livro são histórias curtas, mas que dizem muito e não precisam de explicação.
Os contos de Spencer transmitem a sensação de que tudo pode caber em poucas linhas, mas não se resume apenas a elas. Porque tudo, na verdade, é apenas um pedaço do iceberg. Os textos desta obra podem até terminar aos olhos do leitor, no famigerado ponto final, mas não acabam nunca verdadeiramente, justamente pela capacidade efêmera da arte, que transborda os limites do objeto livro.
São contos escritos por um poeta, que se resolvem em linhas certeiras, deixando o leitor contemplativo pelo enorme poder de síntese das histórias. Quase sempre com narradores em terceira pessoa. O olho do rinoceronte é a metáfora de de alguém que está atento a todos os detalhes ao redor, não deixando nada passar despercebido na aparente calma que o animal (o escritor) possa transparecer. Em detrimento da baixa visão do animal, compensada pela ótima audição e a força bruta, combinações essenciais para sobreviver no pântano, a alegoria perfeita da criação ficcional. A matéria prima do artista.
É perceptível que foi feito um trabalho muito elaborado por trás de cada conto. Embora não sejam grandiosos, inovadores, existe o mérito da simplicidade que diz tudo em pouquíssimas linhas. Com função e efeito narrativo atingindo em cheio o objetivo. É um livro seco, mas de bastante criatividade. O necessário para fazer de uma curta viagem de ônibus, metrô, ou daqueles dias chatos, algo luminoso, com a alegria que a boa literatura pode proporcionar.
O olho do rinoceronte é uma bela estreia ficcional de um autor que já publicou cinco livros de poesia. Uns textos são melhores que outros. Alguns não tão interessantes. No geral, é um bom livro. O gênero conto ganha um reforço de peso com Frederico Spencer e o seu olhar astuto sobre as coisas simples da vida.
“Enquanto remexia naquela corpo lembrou dos membros da família – o que servir para o almoço naquele domingo? Um a um, começavam a chegar”. Para o almoço.
Prezado Ney,
Agradeço pela resenha do O Olho do Rinoceronte, você com toda a certeza adentrou no cerne do livro e fez uma análise perfeita. Meu intento com a construção da obra era de fazer uma amarração entre o conteúdo, capa e título, onde estes elementos serviriam como um transporte para o inconsciente de cada leitor, arte para mim é isto, uma sublimação da nossa condição humana, por isto o livro não acaba nem nos pontos, nem quando se fecha a capa.
Muito obrigado, um forte abraço