Por Ney Anderson

“Todas as famílias felizes se parecem. As infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”. A frase clássica de Tolstói deveria estar estampada na epígrafe do livro Restos de Família (Ed. Vacatussa), do escritor Diogo Almeida, mas não por entregar, de cara, a infelicidade citada no texto. Mas, sobretudo, por conta da última sentença, “à sua maneira”. Essa sim, misteriosa em todos os sentidos. Um autor como Tolstói jamais cometeria o pecado de criar uma frase feita, de quase auto-ajuda invertida, se não fosse justamente por conta do poder dúbio que as palavras podem ter.

Parece que Diogo Almeida segura na mão do autor russo e compreende o texto não como um emaranhado de frases, mas por saber da importância das palavras para o jogo narrativo. Dessa forma, o leitor acompanha nos 15 contos presentes no livro várias situações familiares que, de início, parecem algo corriqueiro, comum. Mas que se revela sempre fora do habitual. Como o jovem que faz uma pegadinha no amigo, com a ajuda dos pais. Mas que acaba sendo surpreendido no final. Ou o casal que viaja em uma segunda lua de mel para tentar dar jeito no casamento. Mas será que realmente eles conseguem?

Ou então a curiosa história da filha que quer processar os pais por não ter autorizado o próprio nascimento. E o conto sobre a criança canibal, que é tratada com um aparente ar de normalidade pela família. E ainda a mulher que ao voltar para casa descobre que tem outra em seu lugar e não é reconhecida mais, nem pelo marido, muito menos pelos filhos. E o viúvo que fica obcecado com um dos quadros de uma exposição e acaba constatando algo incrível, para espanto do leitor. Ou o menino que fica sabendo a sua origem por meio da árvore genealógica, e as possíveis descendências, para desespero da mãe.

Todos os contos do autor têm o caráter da surpresa. Apesar de curtos, eles conseguem subverter nos momentos finais e entregar algo que o leitor não esperava receber. A relação não tão sadia de uma criança com a tecnologia, por exemplo, que preocupa a mãe, estabelece um final digno dos melhores suspenses. E o que falar sobre o estranho presente que o filho pede ao pai rico no dia do aniversário. Aqui, acompanhamos o que o poder financeiro é capaz de fazer. Mesmo que seja totalmente incorreto.

Em dos melhores contos, um rapaz enlutado, que está no velório da mãe, descobre através de um homem desconhecido que chega na cerimônia, o outro lado da falecida, totalmente desconhecido para ele. A imagem falsa de mulher recatada e do lar que ele viu por tanto tempo.

E as descobertas dos primos durante uma brincadeira inocente, que descamba para situações não tão puras. “Me responda, um filho serve pra quê?, pergunta a personagem para a tia durante a noite de Natal, quando é constantemente questionada porque ela ainda não teve filho, já que está com trinta e poucos anos. A conversa, claro, vai por caminhos onde a maternidade passa a ser analisada do ponto de vista cheio de verdades inconvenientes.

E o diálogo entre uma família de macacos (sim!), quando um deles começa a ter pensamentos e atitudes revolucionárias de evolução, para desespero do pai conservador. E a curiosa e enigmática conversa do casal sobre o universo e o fim das estrelas.

“Dona Maria, minha vida é um crediário. Tudo fica pra amanhã, a prestação da geladeira, a festa de aniversário do meu filho, meus sonhos. Menino quer iogurte, quer carne, preciso de geladeira pra guardar. Vou comprar, cadê dinheiro?”, diz a empregada doméstica para a patroa, durante uma conversa sobre consumo. É um texto de uma naturalidade cômica, mas que escancara o pensamento da elite em relação à vida da classe menos favorecida.

Restos de família é um livro curto, de quarenta páginas, que está sendo vendido na Amazon por R$ 9,90, que vale muito a leitura. Através das suas páginas o autor nos apresenta a sua família ficcional, ou o que sobrou dela. Muito mais do que a felicidade da célebre frase de Tostói, Diogo Almeida mostra que ser infeliz, cada um à sua maneira, é o que salva a leitura da obviedade.

O livro inaugura a Coleção Solidária, do selo Vacatussa. Toda a renda revertida com a venda dos e-books será destinada para instituições de caridade.

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