Crédito da foto: Edney Meirelles

Por Ney Anderson

Depois de vinte e um anos do lançamento do seu primeiro (e até então único) e premiado livro de contos As sombrias ruínas da alma, que lhe rendeu o Jabuti, o pernambucano Raimundo Carrero retorna ao formato com Estão matando os meninos (Iluminuras) para dar voz aos acossados pela injustiça social que vem destruindo todos os dias meninos e meninas, moradores das periferias brasileiras, que têm o sonho interrompido por mortes prematuras por estarem no meio do eterno fogo cruzado de uma guerra que nunca acaba.

Foi movido pelo sentimento de revolta e dor que Raimundo Carrero escreveu o livro, disponível em formato e-book na Amazon, e na versão tradicional, impressa. É uma obra de contos, com 128 páginas, que reflete o enorme abismo social que uma enorme parcela da população brasileira enfrenta. A ideia de escrever este livro surgiu, sobretudo, por conta dos assassinatos de crianças no Rio de Janeiro, mas que se estendem por outras localidades do país.

Nas histórias, acompanhamos meninos e meninas vítimas de bala perdida, pessoas humildes que tentam seguir a rotina, mas que em questão de segundos acabam sendo o alvo de uma guerra sem fim, no confronto eterno entre polícia, milicianos, traficantes e bandidos de toda a ordem. O título não poderia ser mais cirúrgico, porque nessa guerra, os mais vulneráveis acabam pagando um alto preço. São crianças assassinadas dentro das escolas, nos becos dos morros e nas próprias casas. Isso tudo chancelado pelo silêncio das autoridades ou por justificativas que não servem para absolutamente nada.

O autor, inclusive, diz o seguinte na sinopse: “Escrever estas histórias talvez tenha sido a atitude mais dolorosa que enfrentei nesses meus setenta anos de vida. E, é claro, na minha carreira literária. Estou cansado, mas ainda assim acredito que minha obra, de alguma maneira, contribuirá para o fim desta guerra de bandidos, que só mata crianças e dizima uma geração de brasileiros”.

Neste livro com 14 contos, divididos em três capítulos intitulados de Carta ao Mundo, começando pela quarta carta até a sexta, Carrero resgata alguns personagens de As sombrias ruínas da alma, atualizando a complexidade do ser humano que, neste caso, não poupa esforços para matar, causando sempre dor e desespero. É uma obra que denuncia a injustiça e a agressão social no Brasil cada vez mais fragmentado. 

 “Os contos são como contassem as minhas dores. E a morte desses meninos estava me doendo muito. Eu tinha que escrever este livro. Era inevitável”, diz Raimundo Carrero. 

O título, inclusive, surge da boca de um pai desesperado com a morte do filho. O mesmo pai que vai ao boteco ao encontro de amigos afogar a sua dor. A imensa inutilidade do choro. É um livro recheado por imagens poderosas, como o delírio de outro pai que vê o filho no sonho, morto, pedindo para ser salvo. Vemos escolas no meio do fogo cruzado, onde os jovens viram alvo fáceis. Mas também mulheres e homens que tentam viver como podem no meio dos conflitos.

Os personagens são pessoas que já pagam o preço da miséria, do enorme buraco social, sem perspectiva de futuro, que precisam conviver, muitas vezes, com a fome. Garotos que tentam o sustento nas ruas para não sucumbirem à miséria. A única saída em um país sem futuro para gente tão pobre de tudo que a obra retrata, onde a falta de alimento continua sendo uma dura realidade. A fome que humilha, fazendo a esperança nunca surgir de fato, se juntando ao banho de sangue. “Quem matou minha filha?”, grita uma mãe sufocada pelo vazio da ausência e o silêncio das respostas.

“A intensa crueldade das balas cruzando os dias para se entrincheirar no corpo dos meninos. Sem ter quem os defenda. Nunca. Escutara. Nem mesmo a lei. A exposição macabra dos filhos mortos”.

Arcassanta, território fictício criado há vários anos pelo autor, retorna neste livro. Aliás, ela aparece de múltiplas formas. Sendo um bairro, cidade, rua, estação de trem, beco ou edifício de luxo. Arcassanta é o mistério dentro do mistério na cidade do Recife. Arcassanta muda o tempo todo, se desloca pela representação dos fatos narrados.

É um livro fortemente marcado pela desesperança, mas não foca somente nos assassinatos das crianças. A lente do autor gira para outras situações. São histórias contemporâneas, com personagens marcados pela dor, mas que não se prenderam à monotonia do tema único.  Apesar de forte e emocionante, de figuras cruelmente sofridas, é um livro com narrativas que envolvem o leitor, em uma pegada rápida e vertiginosa.

Estão matando os meninos é também sobre o garoto que resolve ajudar um cego artista de rua em troca de algum dinheiro, mas que num ato de desespero come restos de frutas misturadas na lama no final do dia. É a tristeza de Amelinha, de apenas nove anos (mas com o rosto cheio de rugas), em ver os pais assassinados e ter a humilde casa na favela incendiada. Também é a passarela de Salatiel, um homem que desde cedo conhece as dores do mundo. E a idosa que vive sozinha, e é esfaqueada pelas costas, dentro do próprio apartamento no bairro de classe média alta. E ainda a convivência desarmoniosa de um casal durante a pandemia, tendo que ceder espaços no isolamento social. Outro casal, em lua de mel, que desfruta da noite de amor, mesmo com o tiroteio na rua, por já estarem acostumados com o absurdo da violência.

Acompanhamos a vida de Judá, o jogador de futebol desprezado por ter perdido um pênalti na final do campeonato. E o protesto contra o racismo depois da morte de George Floyd, nos Estados Unidos. Pessoas perseguidas por serem negras. Além da reflexão sobre o protagonismo de Greta Thunberg e Malala Yousafzai, meninas que lideram movimentos globais, mesmo com pouquíssima idade.

Tudo isso sem deixar o livro confuso, ou tirando o objetivo da obra, porque todos esses elementos fazem parte do mesmo universo trágico. O texto é límpido, solto, onde as possíveis metáforas residem no conjunto cru da tragédia humana, muitas vezes tratada com desdém, por pessoas que não sabem, mas extinguem-se elas próprias, e nem se dão conta disso. Por isso que a morte aqui, neste livro poderoso, é um alerta. A face do mal, do poder, traga para dentro do seu infortúnio as almas que não podem clamar por justiça.

São contos com muitas visões. Todos, claro, pendendo para a tragédia. Mesmo quando não há morte, ela está lá, subtendida. É uma obra aberta e abrangente, mas sem deixar de lado o sombrio que já é uma das marcas do autor pernambucano.

Produzido durante o isolamento social, principalmente nos meses de julho e agosto, o volume de contos consumiu várias horas do dia do escritor, sempre anotando frases, rascunhos e perfis para compor a galeria de figuras que habitam a sua literatura.

“Fiquei trancado em casa escrevendo, escrevendo, escrevendo, com muita emoção sob temas contemporâneos. Me exigiu muito esforço físico e mental”, diz.

As cartas ao mundo, por exemplo, segundo Carrero, são uma espécie de repreensão às autoridades em todos os níveis, que continua o que foi iniciado em As sombrias ruínas da alma. “É uma forma de advertência aos poderosos do mundo. Cartas aos poderosos. Na década de 1970 li um livro de Nikos Kazantzakis, O Capitão Mihális: (liberdade ou Morte), em que havia um professor humilde e silencioso que todas as noites escrevia carta aos poderosos ensinando como melhorar o mundo. Me vesti deste professor para escrever não apenas contos, mas cartas denunciando as dores do mundo. O livro é uma carta aos poderosos clamando por harmonia social, solidariedade e paz, denunciando o horror do mundo contemporâneo. O livro é um projeto lítero/sócio/político”, resume Raimundo Carrero.

Estão matando os meninos, vigésimo segundo livro do autor, que tem linda capa desenhada (mais uma vez) por Halina Beltrão, merece repercutir entre os leitores de uma forma geral. Porque inquieta profundamente e nos mostra que a realidade não é apenas uma suposição literária.

“Um momento. Só um momento em silêncio. Dois nordestinos extraviados. O filho assassinado. Rasgado de balas de rifle. Mataram Jorge, meu filho. Estão matando os meninos. Os homens chegam atirando e matam. Quem cuida da alma é Deus. Agora eu cuido do corpo… do que resta do corpo. Descobre desalentado que o barulho, os ouvidos, as vozes não veem de fora, estão na alma, encravados no sangue. A intensa crueldade das balas cruzando os dias para se entrincheirar no corpo dos meninos. Sem ter quem os defenda. Nunca. Escutara. Nem mesmo a lei. Nunca esqueceria aquele rosto sangrando. O olho de João atingido. Mesmo no olho, não é assim que se diz? A exposição macabra dos filhos mortos.

— Na escola matam logo…

— Basta empurrar o portão da escola e matam.

— Matrícula é sentença de morte.

— Como? — Quando você assina uma matricula, assina a sentença de morte do filho.”

Texto publicado originalmente, em tamanho reduzido, no jornal O Estado de São Paulo, no dia 1 de novembro de 2020

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