Por Ney Anderson

Uma mulher vai à praia pela primeira vez aos 33 anos de idade jogar as cinzas de sua mãe no mar, alguém com que ela teve sérios problemas durante toda a vida. Nessa praia, ela observa um barco e decide partir em uma viagem sem destino pelo oceano. Morrer no mar é o desejo final para dar cabo a uma vida indesejada, sem grandes esperanças, ruidosa desde sempre na convivência conturbada com a mãe. Essa é a premissa central do romance Perto dos olhos de Deus, de Alessandro Thomé, publicado pela editora portuguesa Assírio e Alvim.

Agora, livre das amarras maternas, a personagem não precisa mais tentar atender as expectativas da parente, nem mesmo do mundo e da sociedade constituída da qual faz parte. Já dentro do barco, que ela compra com a venda do apartamento, único bem deixado pela mãe, e depois de aprender a guiar toscamente, ela parte em caminho de solidão e de entrega na própria essência. A protagonista-narradora começa a voltar à gênese de si mesma, onde pequenos filmes passam por sua cabeça, principalmente a situação conflituosa relação entre filha e mãe.

É nessa viagem que a mulher vai compreendendo o trauma da estranha convivência que durou toda vida. A história do romance é muito (ou principalmente) pautada nesse vínculo. Sobretudo das lembranças dela tendo que conviver com as frases duras que a mãe sempre dizia. É um livro construído, em maior parte, com o olhar pessimista sobre a vida, intercalado com a beleza e o espanto da imensidão do mar no qual ela está aprendendo a se adaptar.

A pretensão dela é navegar até onde o combustível durar. E viver à deriva após isso, esperando o que o destino lhe reserva. A voz da mulher, aliás, é muito bem construída, pois imprime um toque pessoalíssimo, fazendo o leitor entrar no barco junto com ela, nas lembranças de todas as suas fases.

A narradora é uma pessoa náufraga de quase tudo. O leitor é apresentado aos pequenos naufrágios dessa protagonista. Perto dos olhos de Deus é rodeado por vários elementos extras que vão surgindo e surpresas acontecendo a todo instante. O mar, aliás, é um elemento muito forte dentro da narrativa. As imagens que Alessandro Tomé constrói são fortes e marcantes.

O medo dessa jornada para lugar nenhum, obviamente, também está presente. Pois ela, claro, é humana e tem pavor ao desconhecido. A virada de chave do livro é a inserção de um componente totalmente imprevisível, que a faz repensar tudo o que estava planejando, a partir do mundo que, enfim, seria só dela. Esse algo inesperado a deixa presa, novamente, à terra de onde queria nunca mais voltar. Logo ela, alguém que simplesmente não existe para outras pessoas.

A narrativa vai fazendo conexões certeiras entre o que está acontecendo no momento da viagem com coisas do passado dessa viajante. A protagonista se conecta com alguma coisa que não tinha sido aflorada até então. Esse é um livro que tem muito de uma religiosidade transviada, longe dos dogmas, apenas na comunhão entre ela e a natureza.

O leitor é levado para àquele momento, transposto para dentro das sensações dela, em cenas emocionantes, de sonhos esfarelados. O entendimento dela sobre o mar e os seus mistérios, e os próprios mistérios, até então nunca revelados totalmente para ela mesma surgem dia após dia. O que representa tudo isso para ela? É justamente durante esse alto grau de reflexão que ela vai tendo a compreensão sobre a mãe por conta dessa viagem sem volta. E, consequentemente, se entendendo também.

A percepção sobre a embarcação e a vida no mar é fator determinante na jornada. O relato de como é estar num barco, à deriva, é descrito aqui de forma muito real. É possível entrar no barco com a narradora, tamanha é a potência da narrativa. Ressaltada ainda pela ideia fixa dela que há um monstro marinho à espreita por baixo do barco, embalado em toda beleza, grandiosidade e na sensação de pequenez assustadora que o oceano provoca. Cabe nessa narrativa até uma boa pitada de terror.

Não por acaso, ela começa a ficar arrependida depois de algumas semanas no mar. O leitor, portanto, fica se perguntando como tudo vai terminar. Qual a solução? Por isso acaba entrando de cabeça nessa incrível jornada de reencontro.

Nesse não-lugar em que a protagonista se encontra, além de se compreender, ela vai entendendo perfeitamente a mãe. Entender, sobretudo, o que pode ser mãe e o que é ser filha. Perto dos olhos de Deus se mostra um potente texto sobre o entendimento da existência materna.

É um elemento surpresa que dá para ela esse sentido de maternidade. Mesmo a protagonista tendo agonia em estar viva, sem problemas de saúde, apenas por falta de sentido e perspectiva. A melancolia pura e crua, através de uma grande mágoa com a existência, na compreensão até como mulher. Ela, no entanto, vai tomando as rédeas daquilo que nem sabia que tinha.

A mãe, obviamente, ronda todo o percurso. Mas que vai mudando com o passar dos dias. Uma mãe que, mesmo morta, reflete na protagonista inominada (o nome dela, citado apenas uma vez no livro) toda a urgência da sobrevivência e do dilema da vida. Aos poucos ela vai tendo outro olhar para a relação. Em determinado ponto, o tempo deixa de existir na narrativa e apenas vai acontecendo. A mulher precisou se afastar do mundo para poder se encontrar.

Entre mãe e filha alguns momentos de ternura, ela recorda. Para logo em seguida sentir uma enorme sensação de desamparo, quando passa a se agarrar aos farrapos de esperança nessa jornada para dentro de si mesma.

Esperança. Sentimento mudo. Sensação verdadeira de terror de solidão e tristeza. Tudo entrelaçado no mesmo ser.
Uma possibilidade para além do que fazia e achava possível, depois de tudo o que ela não havia visto antes do mar, coisas tão bonitas que só agora notou. É impossível não entrar nesse barco junto com a narradora. O leitor se torna parte da narrativa.

Talvez essa jornada represente para ela o pedido íntimo de desculpa para o esperava da vida, carregado por sentimentos de culpa. A narradora é uma mulher que vive todos os lutos. O sentimento que ela carrega, de alguma forma é de desamparo. Mas, aos poucos, vai sendo modificada. Os dias sem novidades no mar são quase todos iguais. Apenas com ela tentando sobreviver. E isso faz toda a diferença.

O romance não deixar de ser uma aventura espetacular. Também tem muito do entendimento sobre o mundo e a ancestralidade. Ela, inclusive, chega no outro lado do planeta, literalmente, para saber (e entender) onde é o seu verdadeiro lugar, que ela havia deixado para trás. Quem ela pode ser depois disso? A personagem descobre a partir disso tudo, aliás. O mau e o bom podem ser uma coisa só, dependendo do ponto de vista, ela se dá conta. Essa é a grande resposta que ela recebe em troca.

No final das contas, Perto dos olhos de Deus é um espetacular livro sobre o renascimento e o perdão. E Alessandro Thomé um dos melhores prosadores brasileiros.

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