Por Ney Anderson
Em homenagem aos 10 anos do Angústia Criadora, escritores de todo o país falaram com exclusividade ao site sobre literatura, processo criativo, a importância da escrita ficcional para o mundo e para a vida e diversos outros assuntos. Leia a entrevista a seguir com o convidado de hoje. Divulgue nas suas redes sociais. Acompanhe o Angústia Criadora também no Instagram: @angustiacriadora e Facebook: https://facebook.com/AngustiaCriadora
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Lima Trindade (1966) é mestre em Letras pela Universidade Federal da Bahia. Publicou o romance As margens do paraíso (Cepe, 2019), a novela O retrato (P55, 2014) e o livro de contos Aceitaria tudo (Mariposa Cartonera, 2015), entre outros. Participou de inúmeras antologias de contos, entre elas Sete a Um (Cousa, 2018), Geração Zero Zero (Língua Geral, 2011) e Tempo bom, (Iluminuras, 2010). Atualmente assina uma coluna de crônicas no site do jornal Rascunho.
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O que é literatura?
É tudo o que o pensamento humano produz e organiza por meio do código da palavra escrita. Há a literatura de ficção e a de não-ficção, independente do juízo de valor que se possa abstrair dessas duas categorias. Nem uma nem outra são puras, mas na ficção deve preponderar a inventividade, a fantasia e a subjetividade, e na não-ficção, a objetividade em torno do que convencionamos chamar de realidade.
O que é escrever ficção?
Para mim, um desafio. É quando exerço a possibilidade de ser outro e, por meio da linguagem, contatar um eu até então desconhecido.
Vocação, talento, carma, destino…..o escritor é um predestinado a carregar adjetivos que tentam justificar o ofício?
Não sei. Não sou inimigo dos adjetivos. Não penso que seja ruim nem bom classificar e qualificar qualquer coisa. O problema está quando se tenta impor uma opinião ao outro e ela não passa justamente disso: uma opinião. Da mesma forma, não acho que o escritor seja um sujeito passivo a carregar justificativas para exercer seu ofício. Muitas vezes ele mesmo é o principal responsável pelo peso que carrega. Como em qualquer outra profissão, existe grande competitividade entre os escritores. Uma crítica negativa ao trabalho de um colega pode esconder razões nada nobres como a inveja, a vaidade ou o ressentimento. Ou, por sua vez, pode ser honesta e não guardar traço de pessoalidade algum. A mesma lógica se aplica ao elogio. Um livro pode ser bem ou mal escrito do mesmo modo que uma roupa pode ser bem ou mal costurada. Todavia, nem todo livro bem escrito vai agradar a todos e nem todo livro mal escrito desagradará a todos. Isso não deveria ser motivo de conflito. Acho a discordância salutar, desde que não se perca do horizonte que o objeto de apreciação deve residir sempre na obra e não no artista que a produziu.
Qual o melhor aliado do escritor?
O reconhecimento da própria ignorância e a disposição para continuar a aprender.
E qual o maior inimigo?
A autocomplacência.
Escrever é um ato político? Por qual motivo?
Não necessariamente. Uma pessoa pode escrever e destruir tudo o que escreveu em seguida. A escrita só se torna política quando é compartilhada, quando marca uma presença e um ponto de vista qualquer sobre a vida, quando seu agente, o escritor ou escritora, sente que não basta simplesmente viver e aceitar o que lhe foi e é dado, mas que pode e possui meios para se expressar e participar da vida coletiva.
Quais os aspectos que você leva em conta no momento que começa a escrever?
Tudo conta, mas o principal é o nível de concentração, que só obtenho por meio da solidão e do silêncio exterior.
A literatura existe para entendermos o começo, o meio ou fim?
Existe para que não percamos o legado do conhecimento humano por meio da memória, para que transmitamos as mais variadas emoções e sensações e, também, para que imaginemos inúmeras possibilidades de futuro.
Se escreve para buscar respostas ou para estimular as dúvidas?
Para ambos.
Criar é tatear no escuro das incertezas?
E no escuro das certezas também.
Cite um trecho de alguma obra que te marcou profundamente.
“E tudo que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era.” De Caio Fernando Abreu em “Além do ponto”.
É possível recriar o silêncio com as palavras? Como?
Você acredita que qualquer pessoa pode escrever uma história? Mas, então, o que vai fazer dela escritora, de fato?
Qualquer pessoa pode cozinhar? Qualquer pessoa pode cantar? Qualquer pessoa pode nadar? O que faz uma pessoa ser profissional de determinada atividade além do fato de ela ter o conhecimento técnico necessário para isso? Ter conhecimento técnico é suficiente? Todo profissional é um bom profissional? Quem avaliza seu trabalho? São os especialistas da área ou aqueles a quem tal atividade é destinada? Uma coisa é inquestionável, alguém só se torna escritor escrevendo.
É preciso saber olhar o mundo com os olhos da ficção? O mundo fica melhor ou pior a partir dessa observação?
Não gosto de ditar regras. Penso a não-ficção tão importante quanto a ficção. A ficção proporciona uma leitura mais subjetiva, uma vivência emocional que pode ou não se aprofundar, dependendo da capacidade e qualidade de cada leitor e dos livros que ele escolhe.
Todo texto ficcional, mesmo os mais extensos, acaba sendo apenas um trecho ou fragmento da história geral? Digo, a ficção lança o seu olhar para as esquinas das situações, sendo praticamente impossível se ter uma noção do todo?
Sim.
Nesse sentido, uma história nunca tem início, meio e fim?
Ao mesmo tempo, ela tem sempre um início, um meio e um fim.
Você escolhe os seus temas ou é escolhido por eles?
Não vejo uma fronteira nítida entre as duas situações. Elas acontecem simultaneamente.
É necessário buscar formas de expressão cada vez menos sujeitas ao cânone, desafiando a língua, tornando-a mais “suja”, para se aproximar cada vez mais da verossimilhança que a história pede? Ou seja, escrever cada vez “pior”, longe da superficialidade de escrever “certinho”, como disse Cortázar, talvez na tentativa de fugir da armadilha do estilo único?
É necessário para quem? Necessário por qual motivo? Não há também um cânone do escrever “sujo” e “pior”? Um nicho de mercado altamente domesticado? Estabelecer um objetivo a priori já não mata a “verossimilhança que a história pede”? A negação do cânone não resultaria numa afirmação disfarçada? Todo cânone é obrigatoriamente nocivo?
Quando é que um escritor atinge a maturidade?
E eu sei lá? Quem deve se ocupar disso é a crítica literária e a historiografia.
O leitor torna-se cúmplice do escritor em qual momento?
No momento em que ele se “esquece” de que está lendo e é só leitura.
Apenas um livro para livrá-lo do fim do mundo em uma espaçonave. O seu livro inesquecível. Qual seria?
O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha.
Qual a sua angústia criadora?
Começar a escrever um livro e nunca chegar a terminá-lo.
Adorável a entrevista de Lima Trindade. Como sempre, seus pontos de vista são lúcidos e, longe de fechar caminhos, abrem mil possibilidades de busca, de conhecimento, de reflexões, enfim. Sempre bom ler e ouvir esse escritor.