Foto: Raquel Gandra/Divulgação
Foto: Raquel Gandra/Divulgação

Por Ney Anderson

A sinopse de Tentativas de capturar o ar (Rocco), novo romance do carioca Flávio Izhaki, nos apresenta uma história, no mínimo, interessante. Com apenas três livros publicados, Antônio Rascal tornou-se um dos autores mais respeitados da literatura brasileira. A crítica especializada diz que ele escreveu o maior romance dos últimos 25 anos. Mas justamente depois da publicação dessa obra (Veranico) parou de publicar. Mesmo assim, novas edições deste, e dos outros dois livros, não param de ser relançadas, inclusive fora do país. A grande pergunta é: porque ele parou de publicar, mesmo depois do sucesso? O jovem Alexandre Pereira, admirador e estudioso da obra de AR, resolve então escrever uma biografia para tentar desvendar essa pergunta. O biografado, contudo, já está falecido há algum tempo. O que torna as coisas mais difíceis. Pereira entrevista pessoas próximas, faz pesquisas exaustivas e começa a escrever o que pode se tornar uma grande biografia, mesmo não tendo escrito nada tão complexo antes. Mas Alexandre morre num acidente de carro antes de concluir o livro.

Nos é entregue uma biografia fragmentada e, de certa forma, fracassada, pois não consegue responder o principal questionamento do enredo, que é o motivo de Rascal ter parado de escrever. O romance de Izhaki não é convencional, porque a partir dessa ideia ele entrega ao leitor algo como um making off literário inacabado, através da escolha do editor de Alexandre Pereira. O livro é dividido em algumas partes: o diário do biógrafo; entrevistas de Pereira com pessoas próximas de Rascal; o relato do filho do biografado, que manteve uma relação difícil com o pai. É bom salientar que existe algo que aproxima biógrafo do biografado. Da mesma forma que o filho de Rascal teve uma relacionamento complicado com ele, Alexandre Pereira também não desfrutou de uma ligação amigável com o pai. O livro tem um pouco disso, aliás, da relação paternal, que permeia toda a obra. A estrutura se complementa com o posfácio, ficcional,  do personagem Roberto Otaviano. Além de dois textos inéditos de Antônio Rascal, que aproxima o leitor da produção desse autor enigmático.

Um desses textos é um conto de amor que ficou de fora de algum livro do autor, o outro é o possível relato de um crime endereçado ao filho. Algo que poderia ter desencadeado a crise criativa de Rascal, e culminado na falta de novas produções após o lançamento de Veranico, sua principal obra.  Pereira não sabe se o relato é verdadeiro ou uma artimanha ficcional do seu mestre literário. Nesse relato é possível ver um homem culpado, mas que tenta expurgar os fantasmas fazendo essa “confissão” para o filho, mesmo dizendo não ter sido intencional. Quanto mais Alexandre Pereira procura por provas, mais se perde. Quanto mais tenta sair do labirinto, mas encurralado fica. Ao longo do livro vamos recebendo pequenas mostras da produção do biografado, mas não é possível fazer uma avaliação precisa, por conta da subjetividade dos textos apresentados. Mas essa é a verdadeira intenção de Flávio Izhaki, não entregar nada de bandeja. Tudo nesse romance é a tentativa de buscar, ou encontrar, o que não existe.  É um grande exercício criativo. O livro de Flávio rompe algumas barreiras sobre o fazer literário. É a velha máxima: na literatura tudo pode e nada pode. Tão bem aplicado nesse belo, e ousado, romance.

Alexandre Pereira tenta entender Rascal, mas se afunda cada vez mais no enigma que é a vida do autor, mesmo que a rotina do autor não tivesse sido grande coisa, como conseguiu apurar nas pequisas. O biógrafo percebe que a superfície, aquilo que se propõe visível para o convívio social, é apenas um recorte escolhido pelo próprio escritor. Ele nunca foi aberto totalmente, nem para os mais íntimos. É uma figura misteriosa para a mulher, o filho, os amigos, os editores e agentes. A estrutura narrativa vai sendo construída sob esse prisma inquieto da investigação literária, da tentativa de entender o que não se pode entender. Na tentativa, acima de tudo, de capturar algo inexistente, mas que pode ser sentido tão forte e presente, como o ar.  Esse é um livro nebuloso, com pitadas do gênero policial. É preciso abrir parênteses para o título muito bem pensado, que faz parte do conjunto poético-enigmático do romance.

Tentativas de capturar o ar é um grande quebra-cabeças que não é montado completamente, mas que faz parte de todo o jogo dúbio que leva o leitor pela obsessiva busca de uma resposta.  É um livro que não se esgota na primeira leitura. Se fosse para defini-lo em poucas palavras, talvez o mais adequado seria: uma não-biografia sobre alguém inexistente. Ou melhor, sobre alguém que não quis existir para além da obra que produziu, que viveu à sombra do sucesso dos livros. Mas essa também é uma mera forma subjetiva de tentar explicar o inexplicável. O mistério ainda permanece.

Flávio Izhaki concedeu a entrevista a seguir exclusivamente ao Angústia Criadora. Nessa conversa, o autor falou sobre o processo criativo do romance, da fuga através do anonimato , do papel do escritor no mundo contemporâneo, entre outros assuntos.



“A ficção parte do caos”

Foto: Divulgação

Tentativas de capturar o ar é um romance fragmentado sobre a busca por alguém que não mais existe. O biógrafo da história sente-se perdido na procura por um personagem obscuro. Quanto mais ele tenta encontrar pistas, mais se vê numa encruzilhada. Isso, de alguma forma, pode acontecer também no trabalho ficcional?  

Certamente. No romance, na medida em que o biógrafo avança ele fica com mais dúvidas do que certezas sobre quem era aquela pessoa. Ao se aproximar de alguém, você sai da zona de conforto das generalizações e entende que é impossível compreender uma pessoa em toda sua extensão. No trabalho ficcional pode se dar a mesma dinâmica. O autor quer ter o domínio do mundo que cria para a sua narrativa ficcional, mas isso é impossível. Pensando ainda que cada livro terá um leitor que chega ao livro com bagagem e visões de mundo diferente, as possibilidades de leituras são infinitas.

O romance fala do isolamento. Da escolha pelo isolamento de um escritor que se recusa a escrever e aparecer na mídia. É uma ironia aos dias de hoje?

Não deixa de ser irônico que nos dias atuais um autor escolha não ter contato com a mídia e os leitores. Mas acredito que o Antônio Rascal não é um autor de hoje, mesmo que ele tenha falecido há pouco tempo no romance. Ele ainda é um autor de uma época em que era possível não existir no mundo fora dos livros. Hoje em dia o autor é quase uma marca de si mesmo, uma construção, seja pelo que fale nas redes sociais ou pelo modo como é socialmente construído em suas entrevistas na imprensa. Isolar-se também é uma construção, mesmo que não intencional. Você pode pensar no caso recente da autora Elena Ferrante, que usa um pseudônimo e ninguém deixa a pobre mulher em paz em sua não existência.

Antônio Rascal escolheu viver quase no anonimato depois do grande sucesso de “Veranico”. Renunciar ao sucesso também é uma forma de transcender?

Em “Tentativas” não sabemos se ele renunciou ao sucesso por decisão transcendental ou por um trauma (sem querer entregar muito da história). Mas pensar em sucesso num mundo literário como o brasileiro, mesmo o ficcional como no livro, é bem relativo. No caso da literatura, transcender, em termos artísticos, é mais perto do possível do que com algo ligado ao sucesso.

O escritor hoje precisa ser um showman?

Definitivamente não. Mas se ele tiver carisma, desprendimento e produtividade nas redes sociais e fora delas, a chance de aparecer e ser lido por novos leitores é bem maior. Certa vez uma jornalista, que tinha feito uma matéria sobre meu livro sem ler, me deu um sermão porque eu não tinha uma boa foto de divulgação. Tirar foto com o retratista de moda não faz de ninguém um escritor, dançar no palco de programa da Globo não faz de ninguém escritor.  Se uma pessoa está mais preocupada com isso do que em fazer literatura, seria mais fácil ele tentar ser showman fazendo outro tipo de arte.

Em determinado momento, algum personagem fala para o biógrafo tomar cuidado para não tomar ficção por verdade. Que limite é esse?

Esse limite parece claro para mim, como escritor, mas um público mais amplo ainda toma aquilo que é escrito como opinião do autor ou fato verídico. Num momento (ou pós momento) em que a autoficção está (esteve) em alta, a leitura que cola autor-narrador fica ainda mais automática. Mas como autor estou mais preocupado com o que posso controlar e a forma como o romance será lido não é uma delas.

O biógrafo em Tentativas de capturar o ar sente-se impotente por não conseguir ir muito longe nas pesquisas e na escrita do livro. Para você existe essa sensação de impotência em algum momento da criação?

Sempre existe, pois o vão entre o que um autor se propõe a escrever e o que de fato o papel aceito é enorme. Mas temos que lidar com isso e tentar fazer com que baste um passo pequeno para que o leitor chegue onde o autor quer, sem dar a mão.

Alexandre Pereira (o biógrafo) está sempre desconfiado de tudo. É preciso essa desconfiança para escrever ficção?

É preciso uma inadequação, um incomodo com o mundo, com o local onde se está (não só físico) para escrever ficção.

Seu livro é uma busca ao desconhecido. Como foi criar literatura a partir dessa ideia? Quais foram os seus modelos?

Criar é sempre dar um mergulho na escuridão e não tem nada inédito nesta frase. Depois do livro as leituras são as mais variadas, algumas pertinentes, outras ligadas à própria realidade e visão de mundo do leitor. Eu parto para a escrita sem respostas, roteiros ou escaletas, então às vezes me surpreendo com o rumo que a história toma. Esse livro partiu da intenção de falar de culpa, mas um dos cernes mais interessantes que apareceu foi a relação pai e filho.

O tempo todo, na leitura do romance, a gente imagina o quanto deve ser difícil escrever uma biografia. Já tentou escrever uma biografia antes ou a ficção foi a saída possível?

Escrever uma biografia deve ser dificílimo pois já se parte da vida dada e o autor tem que se policiar para não montar conclusões sobre o processo sabendo o que foi o produto final – um cineasta de sucesso que na velhice se matou, um escritor que parou de escrever, um jogador de futebol que depois da aposentadoria virou alcóolatra. Na biografia (e fica aqui o parêntese que nunca escrevi nenhuma) precisa de pesquisa, fatos e organização. A ficção, ao contrário, parte do caos.

Você acha que é possível conhecer totalmente uma pessoa pesquisando e escrevendo sobre ela?

A leitura do “Tentativas de capturar o ar” responde a essa pergunta. Não mesmo. Nem a própria pessoa se conhece totalmente.

 Uma biografia é sempre incompleta? Existe biografia perfeita?

Uma biografia é um recorte, uma tentativa de contar a história de uma vida. Ela não pode se pressupor perfeita, mesmo que se saiba todos os fatos, não se sabe todas as interpretações.

A vida de um escritor pode ser mais interessante do que a própria obra dele?

É uma comparação de naturezas diferente. Mas claro que qualquer vida, não só de um escritor, pode ser mais interessante que uma ficção.

Até que ponto a vida de outra pessoa, ainda que artista, pode interessar para além da obra que ele produziu?

Essa é uma pergunta que o biógrafo tenta responder e entender no livro. Aquela biografia de um autor importante que parou de escrever existe porque ele escreveu o que escreveu ou porque parou de escrever?

O livro fala de um autor que é considerado o maior do Brasil nos últimos 25 anos. Para você, quem merece esse título hoje?

No livro, o segundo título do Rascal foi laureado com essa distinção via matéria de um grande jornal. Só desta forma acho que é possível cravar algo assim, sendo claro que isso é uma escolha de uma ou um grupo de pessoas, não uma verdade. Literatura não é quantificável matematicamente, embora alguns prêmios tentem encontrar uma maneira de planificar os resultados com uma série de parâmetros. Ou seja, mesmo que eu ache que um livro pode ser o melhor brasileiro dos últimos 25 anos, isso seria minha escolha, não uma verdade. E, para deixar claro, não tenho resposta para essa pergunta, mesmo do ponto de vista pessoal, de qual seria esse livro.

Se um fossem escrever uma biografia sua no futuro, você iria facilitar ou tornar as coisas difíceis para o biógrafo?

Não consigo imaginar quem se interessaria em ler minha biografia, mas falando mais genericamente, hoje em dia, com a internet, uma pessoa deixa mais pegadas visíveis para o resto do mundo do que num passado recente. Com as redes sociais então a tentação de ser emissor da própria mensagem faz muita gente abrir ainda mais suas visões de mundo. Dito isso, escrever uma biografia de alguém que vive no início do século XX deve ser mais fácil do que há 50 anos, querendo o biografado ou não.

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