Por Ney Anderson

“Sigo obedecendo uma voz dentro da minha cabeça, que me orienta a falar a verdade. Optei sempre pela verdade, assim sigo com a minha consciência tranquila. Não tenho rabo preso com ninguém, só trabalho com a verdade. Desde  o início da minha vida pública, com o Secos & Molhados, quando nunca tinha dado uma entrevista na minha vida, a voz surgiu dentro da minha cabeça: simplesmente, fale a verdade. Foi o que fiz , e faço até hoje”. Essas palavras que estão no livro Vira-lata de Raça (Tordesilhas), as memórias de Ney Matogrosso, dão o tom do que o leitor vai encontrar nas quase trezentas páginas da obra. A narrativa é baseada em entrevistas antigas na imprensa, que foram atualizadas e organizadas pelo poeta Ramon Nunes Melo, em três grandes conversas com Ney durante um ano.

Diferente de outros livros do tipo, Ney não se desnuda. Vira-lata de Raça (Tordesilhas) serve de forma ampla para o leitor conhecer o seu pensamento, seja como artista ou ser humano, dentro do processo evolutivo, como é afirmado diversas vezes. É uma grande conversa sobre diversos aspectos da vida dele. Algumas vezes os assuntos se repetem. Como a sintonia que ele mantém com a natureza, que vem desde criança.

Ainda que dividido por dez capítulos, não existe uma cronologia nas histórias, é como se as lembranças fossem surgindo sem ordem, porque tudo funciona como uma grande conversa de Ney narrando fatos desde quando ele era muito pequeno, em Bela Vista, e as sucessivas mudanças de endereço por conta do pai militar, até acontecimentos bem recentes. Como a polêmica com o cantor pernambuco Johnny Hooker, sobre uma entrevista para a Folha de São Paulo, onde Ney disse não ser um estandarte gay, mas um ser humano. E as comparações com David Bowie. O outro, Ney diz, era inglês, e ele, latino-americano, brasileiro, índio, nu. Mas sobretudo brasileiro, neto de avô argentino e avó paraguaia, que sempre teve a noção do pertencimento a sua terra e as origens. E por isso mesmo nunca pensou em fazer carreira estrangeira, cantando em outro idioma.

No ensaio com os Secos & Molhados, antes da estreia oficial. Foto: Ary Brandi

O livro não é uma biografia (ou autobiografia) tradicional com detalhes dos seus shows, por exemplo. Mas um mergulho dentro de si mesmo, em situações que foram moldando o seu pensamento, culminando na persona artística que surgiu nos anos 1970. Se hoje se discute a questão da androginia da música brasileira, ainda com bastante preconceito e luta por direitos, Ney já dava a cara a tapa há 45 anos, num período altamente repressor. Desafiando a ditadura militar com as armas da liberdade de expressão. Mas esse é apenas um dos aspectos da sua extensa e multifacetada trajetória.

Ele relembra a influência do teatro, do cinema, o amor pela pintura e a leitura, a descoberta da atração por homens, no quartel em Brasília e a paixão pela leitura. E comenta situações marcantes, como o surgimento da Aids, quando perdeu muitos amigos, e o retrocesso comportamental que o país está vivendo atualmente. Sempre indo e voltando no tempo, ele relata diversas vezes a sua forma desapegada de ser, justamente pelas constantes mudanças de endereço quando era criança, por conta das transferências do pai.

Durante o show com os Secos & Molhados. Foto: Ary Brandi

Mesmo sendo um livro de memórias, a obra oferece apenas pequenas pistas para o enigma Ney Matogrosso, que desde sempre foi alguém misterioso. Não é uma pessoa que se possa acessar todos os detalhes. Mesmo depois de alguns livros, documentários e diversas entrevistas ao longo de quase cinco décadas de histórias, Ney é alguém impossível de classificar.

Para o fã que espera por histórias novas, dificilmente ele vai encontrar algo que o artista já não tenha falado antes. Não existe, por exemplo, o relato de como foi o processo de criação das turnês, da escolha do repertório, com várias músicas emblemáticas no cancioneiro popular. Nesse sentido, o artista fala bastante do início, com os Secos e Molhados, dando um panorama de como foi surgir durante a ditadura desafiando o poder instituído, por meio de apresentações que abalaram os mais conservadores, se tornando rapidamente um fenômeno.

Ney em foto Bob Wolferson de 1976

O livro mostra muito bem outro aspecto da personalidade do Ney, com lembranças do seu processo espiritual por meio do Santo Daime e do Fischer Hoffman, que serviu para lhe colocar em contato com forças transcendentais. A relação com as drogas, e a obsessão por sexo depois dos trinta anos de idade, que durou por muito tempo, mas que hoje não é determinante, segundo ele.

No campo amoroso, Ney relembra a ligação com Cazuza e também com Marco de Maria, com quem teve um relacionamento por 13 anos, e ainda sobre a sua primeira paixão quando ele tinha 21 anos e o namorado mais de quarenta. Mas o cantor não entra no espaço íntimo das relações. Nessas duas últimas, ele apenas cita o envolvimento.

É perceptível também que o pai dele foi uma grande influência em sua vida, já que Antônio (oficial da aeronáutica) era contra tudo o que o filho fazia ou queria ser. A atitude rebelde do artista, de lutar contra a opressão através das apresentações, de alguma forma, nasceu dentro de casa, com o enfrentamento à autoridade do pai. “A maior autoridade que enfrentei na minha vida foi Antônio Matogrosso Pereira”, diz.

Ney preferiu também não expor os artistas que se opuseram em compor exclusivamente para ele no início da carreira e as perseguições que sofreu por parte da mídia, como a censura que sofreu no começo da carreira solo do apresentador Carlos Imperial e do Jornal do Brasil.

Talvez esses detalhes mais específicos, sejam melhor esmiuçados na biografia que está sendo escrita pelo jornalista Júlio Maria, o mesmo que escreveu a biografia de Elis Regina, prevista para ser lançada no primeiro semestre de 2019, pela Companhia das Letras. Porque em Vira-lata de Raça, Ney comenta rapidamente a sua participação como diretor e iluminador de shows do RPM, Simone, Chico Buarque, Cazuza, entre outros, mas não entra no trabalho minucioso da elaboração desses trabalhos. Ele não fala, por exemplo, da feitura dos videoclipes que marcaram época.

Ainda assim, é um trabalho que merece atenção, porque não se está falando de qualquer pessoa. A história de Ney se mistura com a história do Brasil. O livro não pretende ser um desabafo, como o próprio cantor fala, mas o seu pensamento sobre vários assuntos. É possível compreender que Ney sempre foi artista (no sentido mais amplo da palavra) antes mesmo de ser efetivamente cantor.  Para quem não conhece o trabalho dele, essa leitura é uma boa porta de entrada.

Show de Ney Matogrosso no primeiro Rock in Rio, 11/01/1985. Foto Sebastião Marinho / Agência O Globo.

Porque aqui ele fala da sua formação intelectual, o deslumbramento inicial na figura da cantora Evira Pagã, na Rádio Nacional, que lhe despertou, ainda na infância, o lado exótico e sensual que ele adotaria anos depois nas performances musicais. A vida hippie, o período que se alistou na Aeronáutica no Rio de Janeiro, depois indo trabalhar no Hospital de Base, em Brasília, onde ele cuidou de crianças com câncer.  E admiração por Elvis Presley, Marlon Brando e James Dean, até chegar na influência de Caetano Veloso. Ou seja, os gênios indomáveis e brilhantes que atravessaram gerações foram o alicerce criativo para o que ele iria ser no futuro: um artista transgressor. Não por acaso, o título, retirado da música homônima de Rita Lee, composta especialmente para ele, reflita muito bem essa condição de liberdade artística e pessoal, de alguém que nunca se sujeitou a nada, nem a ninguém.

A obra, portanto, é o relato geral, em primeira pessoa, da vida e da arte do mato-grossense que explodiu nas paradas de sucesso nos anos 1970, com o mítico Secos & Molhados, fazendo uma espetacular carreira solo, lhe inserindo na história da música brasileira como um dos principais representantes.

Com Tom Jobim. Foto: Cristina Granato

Vira-lata de Raça mostra muito claramente a personalidade que foi se moldando desde a infância, passando pela relação conturbada com o pai, até a personificação da figura híbrida que surgiria anos mais tarde, seminu, travestida de tanga, penas, adereços e pintura pesada no rosto. O livro apresenta como o cidadão Ney de Souza Pereira se transformou inevitavelmente na figura popular exótica sem precedentes na música brasileira, com o “detalhe” da marcante voz de contralto. Até hoje motivo de bastante admiração.

É bastante claro neste livro, que tem alguma coisa impossível de acessar na personalidade do artista, uma áurea de mistério que nunca é ultrapassada. Que foi sendo reforçada ao longo do tempo, principalmente quando ele resolveu participar de rituais como o Daime e o Hoffmann, para tentar se conhecer melhor, jogando dessa forma uma enorme cortina de fumaça para o público que o acompanha.

A obra reúne 70 fotos de variadas épocas, algumas raríssimas, e discografia completa, com a lista de turnês, participações no teatro, cinema e a direção dos shows de outros artistas, além de extras, com matérias e artigos de Caio Fernando Abreu, Tárik de Souza, Nelson Motta, Vinícius Rangel e Mauro Ferreira.

O livro não é uma obra fechada, até porque Ney continua na ativa. Vira-lata de raça termina justamente como terminam todos os seus shows. Com aquele gosto de quero mais. Reforçando o caráter libertário do artista, em todos os sentidos e apresentando ao leitor a trajetória caleidoscópica de alguém em constante reinvenção, com desdobramentos infinitos, como cita Ramon Nunes no prefácio. É um livro coerente. Ney Matogrosso, como ele mesmo afirma, continua reunindo os opostos, confundindo as classificações e diluindo os rótulos.

“Meu destino é ser um astronauta lírico, com toda a liberdade. Neste tempo de gente insana, sou bastante consciente do poder da palavra, do canto, da energia que emitimos para o outro. Tenho consciência do exercício da liberdade, vou morrer defendendo a liberdade, até o fim. Sou um homem livre, somos seres livres e temos de afirmar isso o tempo todo. Gostaria que a lembrança sobre a minha passagem neste planeta seja de alguém que ousou lutar contra a hipocrisia e queria voltar como espírito guardião da natureza. Quero ser lembrado como uma pessoa que defendeu a liberdade e espero, sinceramente, que enxerguem na minha vida o reflexo dessa liberdade. Quero ir em paz, na hora que tiver que ir, e no meu epitáfio estará escrito assim: “Viveu livre!”. 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *