Por Ney Anderson

Enquanto os dentes (Todavia), romance de estreia do escritor Carlos Eduardo Pereira, nos apresenta Antônio, uma pessoa livre, em toda a extensão que essa palavra possa revelar. Mas por conta de um grave acidente de carro passa a ver a vida por outro ângulo, sentado numa cadeira de rodas. Ele é pintor, mora sozinho, dividindo o apartamento com os quadros e os amores que vêm e vão. Ele é alguém que vê o mundo pela ótica da liberdade e da pintura. A miscelânea das cores e formas que vai criando dia após dia diz muito sobre quem ele é. Apaixonado também pela fotografia, Antônio vive só, mas não é solitário. Tem sempre os amigos à mão para conversas de bar, aventuras e desabafos. Mas ter que se adaptar a sua nova condição, limitado pela cadeira de rodas, é algo que ele não contava. Embora seja uma pessoa de experiências, a existência limitada por um pequeno quadrado não estava em seus planos.

Romance é a estreia do escritor carioca Carlos Eduardo Pereira

Essa nova realidade faz dele um ser ainda mais profundo, que pondera sobre a própria vida durante a viagem apenas de ida para a casa dos pais, num trajeto de algumas horas de barco, onde o romance acontece. O curto tempo cronológico do presente, no entanto, é só um pano de fundo, serve apenas como uma ponte para as lembranças que ele tem, com a história do personagem sendo repassada ao leitor através do narrador em falsa terceira pessoa. Antônio analisa o seu percurso de vida até aquele momento. É um livro recheado de digressões, que vão se adensando durante a viagem. Mas ainda na plataforma de embarque somos colocados diante dos mínimos detalhes que o cercam, os preparativos para a barca sair, a conversa entre os tripulantes, os trejeitos dos outros passageiros, porque ele é um observador nato e nada passa despercebido. Quando Antônio encontra no local colegas antigos e pessoas que fizeram parte da sua rotina, a narrativa se equilibra entre o momento presente e as divagações sobre o individuo durante a conversa. 

Enquanto os dentes é feito de um realismo cru, detalhista e mostra uma vida (nem tão longa, nem tão curta) aparentemente comum, de alguém que sofreu uma drástica mudança, tendo que lidar com o desprendimento forçado, com as lembranças servindo de mola propulsora para os muitos significados que a obra propõe. Nessas lembranças, por exemplo, o pai e a mãe são apresentados ao leitor aos poucos, porque será com eles o desfecho da história. Conhecido como Comandante, o pai militar é uma figura rude e opressora desde sempre na vida de Antônio. Ele nunca aceitou as escolhas do filho, obrigando o jovem a entrar para a Escola da Marinha. Fato que só dura pouco tempo, por conta da alma libertária do rapaz, que resolve sair de casa para fazer o que bem entender. Já a mãe é uma mulher que sempre aceitou a submissão.

Algo curioso é a fluidez do tempo na história. Embora se passe em poucas horas, somos tragados por idas e vindas entre o passado e o presente do protagonista. Se no passado conhecemos a história do Antônio solto no mundo, no presente ele está às voltas com as dificuldades em se locomover (viver) na cadeira de rodas, por conta da falta de infraestrutura do Rio de Janeiro (e do Brasil) e do despreparo das pessoas com os deficientes. Essa crítica é bastante verdadeira e não se limita apenas a geografia carioca. Muito mais do que uma mera crítica social, o trabalho de Carlos Eduardo lida com algo muito mais sentimental e metafísico. A mente de Antônio está ligada em 220 volts, mas o corpo se esvai. E uma coisa está diretamente conectada com a outra, são partes do mesmo conjunto.

“O tempo flui de uma forma estranha para Antônio. Ele percebe o presente expandido, capaz de comportar os acontecimentos do passado como se estivessem ocorrendo agora e o futuro que ele já conhece, pois tem premonições da morte, sabe que está perto dela e como vai acontecer”. 

Em trechos irônicos e de um sacarmos atroz, o escritor nos faz sentir a dura rotina de alguém paraplégico, sendo ele, o autor, também uma pessoa com limitações físicas. É quase como se o leitor estivesse também sentado numa cadeira de rodas, sentindo todas as agruras do protagonista. Não é um livro panfletário, mas mostra o preconceito muito claramente, ainda que de forma sutil. Além de cadeirante, ele é negro, gay e artista. É preciso ressaltar a construção minuciosa desse personagem, que parece ultrapassar os limites das páginas. É algo extremamente bem feito.  Sobretudo, no desenvolvimento de Antônio desde muito jovem, até os quarenta anos da sua idade atual.

O romance é triste e sensível, são 93 páginas que se desenrolam de uma vez só, sem a separação por capítulos, num ritmo tranquilo e constante, como a própria navegação no barco Gaivota. Sua mente também voa para longe, tal qual a ave que dá nome a embarcação.  Antônio é alguém que fala muito em mudança e a sua única opção agora é a rendição, a mudança para o passado. É um romance de ruptura com a vida e todos os seus encantos e desencantos. A viagem para a casa dos pais é a saída, o término, literalmente, do Antônio que um dia existiu. Aliás, a capa mostra singelamente esse aspecto memorialista do protagonista, que apenas se deixa levar.

A estreia de Carlos Eduardo Pereira não poderia ter sido melhor. Não apenas porque ele soube utilizar os recursos narrativos, mas por apresentar uma história simples, verdadeira e tocante. Que o autor continue nos fazendo navegar pelos bons caminhos da ficção.

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