Por Ney Anderson

Um dos principais escritores da sua geração, Gilvan Lemos morreu no dia 1 de agosto de 2015, no Recife, aos 87 anos. Autor de 25 livros, entre romances, novelas e contos, além de textos em coletâneas e periódicos nacionais e internacionais, ele se destacou já no primeiro romance, Noturno sem música, publicado em 1956. Depois disso ele não parou mais de lançar novos livros. Os mais célebres trabalhos do autor de São Bento do Una, no Agreste pernambucano, são os romances A lenda dos Cem e O Anjo do Quarto Dia, que foram adotados em listas dos vestibulares de universidades públicas e privadas. Também se destacam obras como Morte ao Invasor, Emissários do Diabo, Jutaí Menino, entre outros. Gilvan produziu uma obra densa, celebrada por críticos e leitores no começo da carreira, mas que aos poucos foi sendo abafada nos anos seguintes. Não pela falta de qualidade, mas por conta de uma série de fatores, como a famosa timidez do escritor, que não conseguia, por exemplo, divulgar a sua própria obra, e também por uma onda de má sorte, como ele mesmo sempre disse em entrevistas.

Mesmo assim, Lemos sempre foi muito respeitado pela crítica e por leitores famosos, como o dramaturgo Hermilo Borba Filho, que chegou a compará-lo com Dostoiévski. Para outros, ele era uma espécie de semideus de literatura, definindo dessa forma por Raimundo Carrero na biografia Gilvan Lemos- O último capítulo (Cepe Editora – 192 págs), do jornalista Thiago Corrêa, que foi lançada no final do ano passado. Este livro, inclusive, nasceu sob uma encomenda que a Cepe fez a Thiago para a Coleção Memória, direcionadas a personalidades pernambucanas vivas.

Mas o projeto sofreu um duro baque pouco depois que o jornalista aceitou escrevê-la, por causa da morte do biografado dois dias depois da primeira entrevista concedida. O fato colocou em xeque o projeto, já que não seria possível desenvolver o livro a partir das memórias do personagem principal, como era a proposta editorial. Esse final de vida com toques ficcionais causou surpresa e espanto, principalmente a Thiago Corrêa. “Ao sair do seu apartamento perguntei se poderia voltar no dia seguinte. Ele respondeu que sim, com a condição de que ligasse antes. O telefone chamou até disparar. Algo que voltou a se repetir na ligação que fiz após o almoço. Naquele momento não tinha como saber, mas o silêncio aos telefonemas indicava que algumas das mais de sete dezenas de perguntas anotadas em meu bloquinho permaneceriam sem resposta para sempre”, diz na introdução da biografia.

Diante de algumas incertezas que rondavam o trabalho, sobretudo, se escrever a história de alguém tão reservado como Gilvan resultaria em algo interessante, e ainda mais por conta do primeiro (e único) encontro tenha resultado num pequeno arquivo de uma hora de duração, o jornalista decidiu montar um grande quebra-cabeças e buscar a “memória” pulverizada do autor em outras entrevistas para continuar o projeto. Thiago teve o apoio de familiares que lhe contaram diversas histórias sobre Gilvan, além da leitura do breve relato autobiográfico intitulado Vá vendo o caiporismo, de apenas 32 páginas. Sem contar na releitura dos diversos livros do escritor.

A biografia é dividida em 15 capítulos, começando pela infância de Gilvan em São Bento do Una, em 1928, passando pela fase da juventude, o primeiro emprego, a paixão pelo cinema e os quadrinhos (quando produziu já na pré-adolescência as primeiras histórias), a entrada na literatura adulta, através do incentivo da irmã Malude, os primeiros rascunhos originais, resultando na publicação de um conto numa revista (Alterosa) de Minas Gerais, em março de 1948, chegando na escrita de um romance de mais de 700 páginas(que ele tocou fogo por achar que não prestava), até a mudança para o Recife aos 20 anos de idade. Cidade onde ele conheceu amores, se estabeleceu profissionalmente como funcionário público e começou a forjar a sua literatura de uma forma mais séria.

No geral, Gilvan Lemos – O último capítulo, apresenta dois contrapontos: a infância e juventude num lugar afastado, sem muitas oportunidades, até a sua chegada na capital, onde definitivamente ele cresceu intelectualmente, dando continuidade ao seu desenvolvimento literário que foi iniciado aos 15 anos de idade. No início da vida adulta ele obteve apoio de duas pessoas extremamente necessárias no começo da carreira: Osman Lins e Hermilo Borba Filho. O primeiro desempenhando o papel de apresenta-lo ao universo intelectual do Rio e São Paulo, e o segundo lhe dando dicas técnicas de como melhorar o que ele escrevia com tanta abnegação.

Já no capítulo de abertura é possível perceber claramente a inquietação do autor na busca pela arte disponível na cidade, como acompanhar a exibição dos filmes no Cine Rex, que ele frequentava com os amigos, e a compra de livros por reembolso postal, justamente por conta do atraso de São Bento do Una naquela época. De qualquer forma, esse ambiente o ajudou bastante na produção literária, sempre buscando temas que se utilizassem da resiliência e da criatividade dos personagens que moram onde nada parecia existir. Fica bastante evidente na biografia que a influência do cinema, a leitura dos quadrinhos e, pouco depois a leitura do Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas foram as fontes criativas que lhe despertaram o desejo em ler livros de escritores nacionais e internacionais e, posteriormente, escrever a própria ficção.

O jornalista Thiago Corrêa buscou diversas fontes para escrever a biografia depois do falecimento de Gilvan

A biografia passeia pela trajetória de um escritor que, apesar de famoso pela timidez e desapego aos holofotes e distinções, conquistou – desde os seus dois primeiros livros – vários prêmios e, de forma crescente, a admiração e o respeito da comunidade intelectual pernambucana e brasileira. Fica muito claro o trabalho de investigação de Thiago na tentativa de colocar Gilvan em primeiro plano, ainda que de forma fragmentada, mostrando os hábitos que ele mantinha, por exemplo, no bairro da Boa Vista, área central do Recife, onde morou até o fim da vida. Tudo isso embalado no melhor que o texto jornalístico tem a oferecer.

O falecimento do escritor ainda no embrião do projeto teve um perceptível impacto. Principalmente porque os aspectos criativos de Gilvan não tiveram como ser explorados. Faltou esse caráter mais íntimo, como estava programado para ser, com o autor respondendo a longa entrevista e se colocando, de fato, como fio condutor de todo o texto. Se isso tivesse acontecido, sem dúvida, a biografia seria outra. Escrever a partir das memórias de alguém como Gilvan seria um deleite para todos os admiradores.

Mesmo assim, não deixa de ser um trabalho importante de resgate, documental, com farto material (cerca de 100 imagens do autor e dos gibis que ele escreveu e desenhou) sobre um dos principais escritores brasileiros, que teve no início da carreira a obra celebrada por diversos críticos do país, o que lhe rendeu dois prêmios nacionais. Talvez se não fosse pela extrema falta de domínio em vender a própria obra, por conta de uma enorme timidez e também a baixa autoestima, o seu nome constaria no hall dos mais aclamados ficcionistas do país. Ao lado de um João Ubaldo Ribeiro, Clarice Lispector, Ariano Suassuna, Érico Veríssimo, Rubem Fonseca, entre outros do primeiro time da literatura do país.

A biografia destaca a evolução da obra do autor e a vida, de certa forma, misteriosa no aspecto amoroso, já que ele praticamente não falava sobre esse assunto com ninguém. O livro lembra também do fracasso de Gilvan em três tentativas para entrar na Academia Pernambucana de Letras. Mas quando foi eleito por aclamação em 2012, ele não foi na posse por conta de um acidente doméstico.

Para quem não tem tanta intimidade com a obra do autor, esse livro é uma boa porta de entrada para que as novas gerações entendam que ele representou (e ainda representa) na literatura pernambucana e brasileira. E a entrega dele ao longo da vida na busca por uma grande obra ficcional.  É impossível falar de literatura e não colocar Gilvan Lemos entre os principais representantes.

É injusto saber que um dos principais nomes da literatura brasileira, que publicou por grandes casas editoriais, não tenha hoje o reconhecimento que lhe é devido. Alguém que viveu para a literatura e saiu de cena como um misterioso personagem, cercado por mais de quatro mil livros, os mesmos que lhe serviram de companhia a vida inteira, em seu bunker de solidão no 12º andar, no coração da Conde da Boa Vista, onde ele parece ter se refugiado de si mesmo.

 


A seguir, confira uma longa entrevista, em tom informal, que eu fiz com Gilvan Lemos exatamente no dia 6 de setembro de 2010, como parte do Trabalho de Conclusão do Curso (TCC) de jornalismo. Apenas trechos foram utilizados em uma matéria (clique aqui) publicada neste site no dia 17 de maio de 2011, poucos dias após a criação do Angústia Criadora. Nessa conversa é possível entender o que ele mais gostava de fazer depois de escrever: falar.

“Tem uns autores por aí que não se pode chamar de literatura. Eu não tolero. E quando escrevem romances, eles fazem para o leitor não entender”.

Você estava indo para a Nossa Livraria?

Eu ia passar lá, por que tá saindo um livro meu (Sete Ranchos) e o rapaz está demorando a dar o retorno. Porque foi publicado o livro de contos e não saiu divulgação nenhuma, quando o dono (João Luiz) da livraria era vivo era outra coisa, mas ele morreu de repente. Ele publicou vários livros meus. Mas eu fazia por camaradagem por que a editora dele não assina contrato e a divulgação é muito fraca. Aí ele procurou os meus amigos e pediu para cada um escolher um conto. Foi publicado com o título:  “Os melhores contos de Gilvan Lemos, selecionados por seus amigos”. Agora muito mal distribuído, rapaz, não sai em lugar nenhum, ele pegou também um romance que eu tinha escrito em São Bento do Una, quando eu tinha 17 anos, eu falando sobre o livro, quando ele disse: “eu quero publicar”. Eu disse que o livro não prestava, porque eu era muito novo, ignorante e tal. Mas João Luiz continuou dizendo que queria publicar e eu entreguei para ele. E está saindo. Agora, do jeito que João Luiz morreu, a livraria está uma merda, não divulga, não faz nada.

Eu ouvi uma história que você sempre escreveu à mão, nem o rascunho você fazia?

Não. Eu comecei a escrever em São Bento do Una. Lá eu fiz um curso de datilografia, depois fui trabalhar numa fábrica e fiquei viciado em escrever à máquina, tanto que com a mão eu não conseguia mais.

De maneira nenhuma?

Quando eu vim para o Recife, passei três meses desempregado, depois apareceu um emprego muito safado, não dava nem para comprar uma máquina. Quando eu consegui comprar uma máquina escrevi um romance em um mês e dezessete dias. Ele (o livro) já estava todo prontinho na cabeça. Eu trabalhava o dia inteiro e começava a escrever das sete da noite à meia-noite. O livro foi o “Noturno sem música”. Primeiro romance meu, is to é, o primeiro publicado aqui no Recife, porque eu tinha esse de São Bento ( Sete Ranchos) guardado.

Mas você tinha uma rotina para escrever?

Desde quinze anos que eu escrevo, eu vivia só de literatura. Nunca esperei ser escritor, por que São Bento era muito atrasado, não tinha colégio. Fiz o terceiro ano primário e não pude mais ir adiante, me tornei autodidata. Comecei a trabalhar numa fábrica de laticínios e meu salário eu mandava comprar livro pelo reembolso postal. Lá (São Bento do Una) nem livraria tinha. Eu mandava buscar no Rio ou São Paulo pelo reembolso. Fiz minha biblioteca quase toda em São Bento dessa maneira. Aí comecei a escrever, eu fazia história em quadrinhos, minha mania era história em quadrinhos. Minha irmã, que era muito inteligente, mas só tinha o primário também, disse: “você está bom de escrever, esse negócio de história em quadrinhos não dá, é coisa de menino”. Ela chegou um dia e me deu um livro, era uma mulher atrasada mas tinha uma boa leitura, só lia romance bom, Machado de Assis, Eça de Queiroz, tudo gente boa, Humilhados e Ofendidos, de Dostoiévski. Eu comecei a le quando ela me deu O conde de Monte Cristo, primeiro romance que eu li e adorei. No começo fiquei sem vontade, pois o romance era daqueles livros pequenos da coleção Dois Mil Réis, eu achava muito grande, com umas letrinhas miúdas, sem gravura. Mas ela insistiu e eu li e pronto, deixei as histórias em quadrinhos para ser romancista.

Em média, você escrevia um livro em quanto tempo?

Naquele tempo eu escrevia rápido, por que só vivia para isso. Em São Bento do Una eu escrevi uns contos, publiquei numa revista chamada Alterosa, de Belo Horizonte, na Revista da Semana, do Rio de Janeiro, mandava para lá e eles publicavam. Eu fazia só contos. Agora o Sete Ranchos foi o primeiro romance que escrevi. Quando eu vim para Recife foi que eu fiz com rapidez. Depois não. Demorava mais. Quando comecei a ser sério, escrever sério, eu fazia em seis, sete, oito meses. O Noturno Sem Música escrevi em um mês e dezessete dias. Sem tempo. Eu saía do trabalho, jantava e às sete horas da noite desocupava e escrevia até dez, onze horas,  com medo de perder o expediente no outro dia eu ia dormir mais cedo. No domingo eu escrevia direto, só vivia para isso. Era meu maior interesse. Quando terminei esse romance fiquei com ele aqui parado por que não tinha coragem de escrever para uma editora, achava que ia perder meu tempo. Foi quando apareceu um concurso do estado e inscrevi o livro. Quem ganhou esse prêmio foi um professor, eu estou esquecido o nome dele, aliás, ele só ficou nesse livro mesmo. Agora o segundo lugar eu dividi com o Osman Lins. Ele com o livro Visitante e eu com Noturno Sem Música. Osman pegou o livro dele e mandou para o prêmio Fábio Prado, era um concurso de São Paulo e antes mandou para a editora José Olympio e não foi aceito. Quando ele (Osman) ganhou o prêmio Fábio Padro, naquele tempo era um dos mais importantes do Brasil, junto como prêmio Orlando Dantas, era o que é hoje esses prêmios, o que essa turma está ganhando, agora naquele tempo tinham menos propagandas, não tinha muita divulgação. Então Osman entrou no Fábio Padro e tirou em primeiro lugar, foi quando me disse na época que no hotel, lá no Rio, chegou um rapaz da José Olympio atrás dele interessado em publicar o romance. Eu, inexperiente, fiquei com meu livro aqui (Recife), e Osman foi quem insistiu, pedindo para enviar o livro para o concurso. Meu segundo romance Jutaí Curumim eu mandei e Osman inscreveu no concurso. Ainda me lembro das suas palavras: “Gilvan, tem um prêmio, o Orlando Dantas, é tão importante quanto o Fábio Padro, mande Jutaí sem medo”. Eu mandei e tirei em primeiro lugar.  Eram os dois prêmios mais importantes.

Principais obras do escritor foram lançadas pela Cepe Editora

Então você não teve tanta má sorte assim como sempre falou

Mas eu fui tão azarado, que esse prêmio era instituído pelo (jornal) Diário de Notícias, do Rio, eles fizeram reportagem, publicaram um capítulo do livro, foi a maior onda do mundo, eu disse, “pronto, estou solto”. Com esse mesmo livro eu ganhei outro prêmio aqui da UBE, o Prêmio era uma viajem ao Rio e em torno de setenta mil reais (em valores atuais), mais passagem ida e volta e hospedagem num grande hotel. Aproveitei e fui no Diário de Notícias para saber sobre o livro que ainda não tinha sido publicado. Quando cheguei lá estava Álvaro Lins, ele era embaixador em Portugal, mas tinha brigado na embaixada e estava no suplemento do Diário de Notícias, me disse: “olha, eu fiquei muito satisfeito, por que você é pernambucano como eu. Herberto Sales me telefonou tarde da noite, disse que tinha acabado de ler seu romance e que daria um prêmio a ele”. Realmente eu ganhei. A comissão julgadora era composta por Oto Maria Carpeux, Herberto Sales e Aurélio Buarque de Holanda. Comissão julgadora arretada, não é? Eu pensei que estava bombando. Foi quando o Alváro me chamou no canto e disse . “Aqui para nós, o Diário de Notícias está para fechar, eu já prevendo isso, falei com Rubem Braga para ele publicar o romance, ele prontificou-se a publicar”. Rubem Braga tinha a Editora do Autor, ele só publicava livro escolhido, não tinha interesse comercial. Aí começou uma onda de falta de sorte. Existe um conto de Machado de Assis com o título Vá vendo o caiporismo, que fala sobre algumas sucessões de má sorte de um personagem, o que aconteceu de certa forma comigo. Quando eu voltei ao Recife fiquei sabendo pelo próprio Diário de Notícias que Rubem Braga tinha quebrado e  tinha vendido a editora para a José Olympio. Resultado, meu livro não saiu nem no Diário nem em lugar nenhum. Eu era inexperiente, tolo, eu devia ter ido até a José Olympio dizendo que Rubem Braga iria publicar o livro que foi o vencedor do Orlando Dantas. Mas eu tímido, besta, deixei passar e olha o que deu. Uns anos depois, a Cruzeiro ( revista) tinha uma editora chamada Edições O Cruzeiro, que Herberto Sales tinha saído de lá e recomendou ao diretor meu livro, ai ele me pediu, eu enviei e ele publicou. Só pediu para mudar o título que era Jutaí Curumim. Herberto mudou para Jutaí Menino.

Porque só agora você decidiu publicar “Sete Ranchos”?

Porque eu não tive coragem na época, por ser praticamente semianalfabeto. Aí eu guardei o romance. Sete Ranchos é a história de um bairro que tinha lá. Eu romanceei e misturei com algumas coisas verdadeiras e outras inventadas. Só agora, depois desses anos todos, eu estava relendo e percebi que dava para ler tranquilo. É um livro que é uma espécie de saudade a são Bento do Una.

Mas essas edições locais quase não são divulgadas

Eu só dou esses livros para publicar aqui (Recife) por amizade. Mas não adianta. Meus livros já foram publicados no Rio e em São Paulo e tiveram repercussão. Foi nessa época que eu ganhei dois prêmios nacionais. Agora estou velho e fora de cena.

Qual o motivo de não ter ido para São Paulo no início da carreira?

Quando eu sai de São Bento do Una, trabalhava numa fábrica de laticínios, que era até do pai de Alceu Valença, o meu primo legítimo. Décio, o pai de Alceu, era um dos sócios da fábrica e eu comecei a trabalhar lá e fiquei por cinco anos. Nessa época juntei dinheiro porque tinha vontade de ir embora de São Bento. Consegui sair de lá com 20 anos, cheguei no recife em maio, em junho comemorei 21 anos de idade na capital. Foi quando Décio, que também era deputado estadual, preocupado em me deixar sozinho na cidade grande aventurando emprego, me disse que iria conseguir uma colocação para mim. Mas não conseguiu nada. Depois de três meses meu dinheiro acabou, mas logo quando isso aconteceu eu comecei a trabalhar na Sul América. Depois fiz concurso para o IAPI e passei. Quando as coisas foram acontecendo eu não tive coragem de ir morar em outro estado.

Osman Lins foi um dos principais incentivadores de Gilvan Lemos

Mas a sua recepção sempre era muito boa com os editores do Rio e São Paulo?

Os meus principais romances todos foram publicados por lá. Quando Osman Lins foi embora para São Paulo continuou se correspondendo comigo. E ficava dizendo para eu enviar Emissários do Diabo para a Civilização Brasileira (uma das principais editoras da época) sem modéstia e humildade, mas pedindo para não citar o nome dele para Ênio Silveira (o editor), porque estavam sem se falar. Resultado. Eu enviei o livro para Ênio e com menos de um mês recebi o contrato e o livro foi publicado em menos de um ano. Foi o maior sucesso. Naquela época ele mandou fazer uma tiragem de 5 mil exemplares de um escritor estreando no sul do país. Mas depois de 12 anos da obra ter sido publicada de forma independente no Recife. Em seis meses a editora vendeu a metade. Na lista dos mais vendidos dos jornais eu saía todas as semanas. Quando tudo estava indo bem, vá vendo o caiporismo, Ênio Silveira foi preso como comunista, quebraram toda a editora e o livro passou a ser vendido por um cruzeiro nas calçadas. Depois Ênio conseguiu voltar quebrado, mas mesmo quebrado nunca recusou um livro meu. Eu era muito infantil. O crítico Otávio Carpim de Souza tinha uma coluna numa revista. Ele escolheu Emissários do Diabo como o melhor lançamento do ano. Eu ia ao Rio quase todos os anos e nunca tinha coragem de bater na porta das editoras e dos grandes jornais. Qual era o meu papel? Ir lá, né, fazer contato com esse povo? Mas eu não fazia isso. Ficava com vergonha. Eu era muito matuto. (Raimundo) Carrero mesmo me disse que eu havia perdido tempo, porque quando ele publicava algum livro ia para o Rio com a mala cheia de exemplares e distribuía com todos os críticos. Depois telefonava para saber se eles tinham lido a obra. E eu tive essa chance por ter sido escolhido como o lançamento do ano e poderia ter batido na porta dos jornais com todo o gabarito. Mas não fiz. Álvaro Lins mesmo me chamou para jantar com a esposa dele no em Copacabana, eu inventei uma desculpa por vergonha.

Então a timidez atrapalhou bastante a sua vida literária

Demais. Eu hoje não sou um nome de destaque no Brasil inteiro por conta da minha timidez.

E também essa coisa do caiporismo (falta de sorte) que você fala?

Eu tenho contos traduzidos para o alemão e o francês. Uma das maiores editoras de Paris (Ceiou) ficou interessada em publicar o meu livro, estava tudo certo, de repente deu para trás. Me disseram que não iria sair por conta da ditadura no Brasil, que não tinha mais sentido. Uma conversa totalmente sem lógica. Tudo na minha vida foi assim. No final, andava para trás. Um azar danado.

Gilvan com a sobrinha Theresa, em 6 de janeiro de 1999

Dalton Trevisan é um recluso famoso, vende bem e as editoras querem publicá-lo, por que isso não aconteceu com você?

Azar. Quando eu comecei a publicar na Civilização Brasileira, a editora quebrou. A Editora do Autor também. Editora Globo, na época, também faliu. E outras editoras por onde passei. Tudo na minha vida foi assim.

Os seus leitores pedem livros novos?

Aqui no Recife eu comecei a aparecer mesmo quando meus livros começaram a ir para a lista do vestibular, através do professor Janilton Andrade. Vários jovens passaram a ler a minha obra e alguns me encontram na rua e perguntam se eu estou escrevendo coisas novas. Eu fico feliz com isso.

Como está a sua memória?

É curioso isso, porque as coisas antigas, como você está percebendo, eu lembro. As coisas novas não.

A famosa trava criativa está batendo na sua porta?

Eu hoje não consigo mais escrever. Não tenho mais ideia, nem interesse e lembranças. Até as palavras me saem. Eu tento escrever algumas coisas mas esqueço das palavras. Eu fiz até um arquivo no computador intitulado “palavras que eu esqueço” (risos). Às vezes eu vou fazer alguma coisa, aí chego no meio da sala e não lembro. Estou perdido. O último livro que eu escrevi foi Na rua Padre Silva em 2006.

Qual a sua opinião sobre o mercado editorial brasileiro?

Hoje em dia você abre os jornais e não se fala mais em literatura. Dão destaque para culinária, menos para literatura. Se fala muito em coisas populares. Literatura não interessa a ninguém mais

E os autores atuais. Você tem acompanhado?

Tenho, mas não me agrado. Inventaram agora uns contos curtos ou curtíssimos. Dalton Trevisan, rapaz, que era um dos meus contistas prediletos, hoje eu não consigo ler. Contos de uma página. Meia página. Eu acho um absurdo isso. Tem uns autores por aí que não se pode chamar de literatura. Eu não tolero. E quando escrevem romances, eles fazem para o leitor não entender. Eu conto nos dedos os autores atuais que eu leio.

Quais?

Milton Hatoum, Fernando Monteiro e Ronaldo Correia de Brito. Gosto muito da literatura desses três.

Ainda pensa em ser reeditado por uma grande editora?

Nunca mais eu pensei nisso. Até porque não dá mais tempo. O último publicado por uma editora de São Paulo foi A era dos besouros, pela editora Girafa.

Você sente saudades de livrarias como a Livro 7?

Sinto muita falta. Porque eu vivia isolado. Trabalhava no IAPI (depois INPS), terminava o serviço e ia para casa lá no Espinheiro ou em Casa Forte. Em 1985 eu me aposentei e vim morar no centro pensando que era o mesmo de quando eu cheguei, aqui agora está esculhambado, foi quando eu comecei a frequentar a Livro 7 e conhecer o pessoal, porque eu não conhecia ninguém e fiquei amigo de todo mundo. O fechamento da Livro 7 foi uma tristeza. Tarcísio pereira (dono da livraria) toda vez que me encontrava dizia assim: Gilvan que lemos (risos).

O que é literatura?

Hoje em dia é saudade. Era a minha vida, eu só vivia para isso. Passava horas deitado pensando. Quando eu terminava um romance eu me sentia vazio. Aí eu escrevia contos.

E o que é para você um bom romance?

É o que me penetra e me faz perder o sono. Guimarães Rosa, por exemplo, é fantástico. Eu comecei gostando de Graciliano ramos. Minha leitura do início era Érico Veríssimo e José Lins do Rêgo. Cem anos de solidão foi um desses livros que me tirou o sono. Hoje eu tenho preguiça de ler.

Qual o seu melhor livro?

Quando eu terminava um romance eu o achava o melhor. O anjo do quarto dia eu acho muito bom. Emissários do diabo e os olhos da treva também. Emissários talvez tenha sido o meu livro que mais vendeu, por volta de 30 mil exemplares, porque fez parte de uma coleção que vendida somente em bancas de revistas, juntos com grandes autores da época.

Qual a mensagem que você pode deixar para as pessoas que te admiram?

E eu sei?

Gilvan em abril de 1952
One thought on “Biografia remonta a trajetória do escritor pernambucano Gilvan Lemos”
  1. Oi, Ney. Ótima crítica, um material jornalístico de primeira. Certamente que o livro de Tiago deve ser muito bom, a julgar pelo que você escreveu, e pelo profissional cuidadoso que ele é. Fiquei com vontade de ler a biografia de Gilvan, que eu tive oportunidade de entrevistar. Uma figura e tanto. A entrevista que você postou, no final da crítica à biografia, enriqueceu demais este material. Amei.

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