Crédito da foto: Rodolfo Buhrer

Por Ney Anderson

Continuação do romance Enterre seus mortos (de 2018), De cada quinhentos uma alma (Companhia das Letras), o novo livro de Ana Paula Maia, mergulha mais uma vez no mundo seco, sombrio e desolado de Edgar Wilson, Bronco Gil e o ex-padre Tomás. Neste trabalho (o segundo da trilogia), a humanidade está em via de extinção por conta de uma pandemia e pelas ações desumanas do governo. De cada quinhentos ganha contorno ainda mais rude em relação ao romance anterior.

O universo áspero que sempre fez parte da vida desses personagens tem o tom elevado nessa história, justamente porque eles estão, de fato, caminhando em direção ao fim. Mesmo assim, os três tentam uma última tentativa de salvação. Não do corpo, mas da própria essência, dos princípios que carregam, que julgam como corretos. Talvez não a salvação de si próprios, mas das poucas almas que restam em meio ao pó. Mesmo eles não sendo necessariamente religiosos (com exceção do padre, claro), são pessoas com fé na vida, apesar dos pesares.

O livro é conciso, carrega essa urgência não por acaso ou economia. A autora soube esconder bem as situações, não entregando tudo de bandeja, deixando muitas coisas estranhas nas entrelinhas. Sensações misteriosas sentidas pelos personagens servindo de válvula para algo maior, figuras enfrentadas por Tomás, por exemplo, que revela para o religioso o seu passado mal resolvido.

De cada quinhentos uma alma, aliás, é fortemente marcado pelo aspecto bíblico, com vários versículos e citações preenchendo as lacunas deixadas durante a trama, onde o abandono e o castigo divino parecem ser compreendidos, embora contestado, pelos três homens, como uma prova. O último teste das suas vidas. Tudo isso embaralhado com o sentimento de impotência, lógico, que eles inevitavelmente carregam.

“Para Edgar Wilson, além de matar, importava encomendar a alma de cada ruminante que abatia. Edgar acredita
que eles possuem uma e que dará conta de cada uma delas quando morrer”.

Edgar que antes recolhia animais mortos nas estradas, agora precisa recolher pessoas que sucumbem aos montes todos os dias, na companhia dos dois amigos. De gestos concisos e poucas falas, ele entende que viver nunca foi fácil na sua trajetória. Ali, no entanto, em meio aos escombros e às ruínas do mundo devastado, ele se encontra em uma missão ainda maior. Edgar entende, assim como os outros, o carma que carrega, ainda mais por ter sido criado por freiras na infância, e ter essa ligação estreita com o sobrenatural. Bronco Gil se depara também com o pior, ainda mais forte do que a sobrevivência durante o período na penitenciária, em histórias anteriores, que o fizeram chegar até este destino. Não vai ser surpresa se o próximo, o encerramento da trilogia, foque no ex-padre Tomás.

“Diante do cenário de horror, compreende que por todos esses anos ele foi preparado para estar exatamente neste lugar, neste exato momento. Seu lugar definitivamente não é em uma paróquia, mas recolhendo corpos, seja de animais ou de homens”.

O texto De cada quinhentos uma alma é direto, mostrando a crueldade latente em constante crescimento, um medo reticente de quem não sabe o que de fato está acontecendo ao redor e o porvir. De frases fortes e o tom soturno rondando toda a história (com várias referências aos livros anteriores da autora) a ficção de Ana Paula Maia aqui é amedrontadora. É um microcosmo que representa o todo, no qual a autora já vem trabalhando desde o início da carreira.

O apocalipse proposto pela autora neste livro ganha contornos terrenos através do homem que se destrói entre si, apenas com o gatilho de uma pandemia. É a consciência do caos divino afetando diretamente a criação humana,  errônea, por isso fadada ao aniquilamento. A geografia, diga-se, é um personagem, muito emblemática para o desenrolar do enredo. É o céu e o inferno sob o mesmo chão.

O aspecto maniqueísta, inclusive, atravessa toda a obra, onde só uns poucos parecem pertencer ao bem, num embate desleal contra o mal. A história tem uma pegada de faroeste, com odor nauseabundo das ruas e estradas e aves sobrevoando o horizonte, pessoas que se escondem atrás do que resta, em cenários desérticos e hostis.

“Assim como os caminhos do Senhor são insondáveis e sempre imprevisíveis, o caos também é”.

A morte, obviamente, está presente em primeiro plano. Mas diferentemente dos romances anteriores, mesmo com os corpos que se amontoam, a carnificina, o sangue e a brutalidade são mais dosados, porque foca no psicológico, na impotência e nas incertezas dos personagens.

Edgar Wilson, Bronco Gil e Tomás, habituados à dor e à barbárie desde sempre, buscam no limiar das próprias forças impedir o fim, tentando, quem sabe, ser as únicas almas salvadoras em um mundo fadado à escuridão.  Os cavaleiros transviados no embate contra o apocalipse.

— O senhor tinha razão. Nem Deus nem o diabo estão mais por aqui.

— As portas do céu e do inferno estão se abrindo. Tudo o que está no meio será destruído. Esse é o fim e o
começo. 

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