Por Ney Anderson
Lourenço Mutarelli foi um dos mais icônicos quadrinistas do país, principalmente entre as décadas de 1980 e 1990. Álbuns como Transubstanciação e o Dobro de Cinco são considerados clássicos, vendidos por pequenas fortunas em sites de livros. Mesmo assim ele resolveu arriscar e mudar completamente de ofício entrando para o mundo da literatura no início dos anos 2000 . Lançou o premiado, e elogiado, O Cheiro do Ralo pela editora Devir, que logo em seguida virou filme de Heitor Dália, com Selton Mello no papel principal. O livro foi escrito em incríveis cinco dias e já se tornou também um clássico do autor. Nada mais natural que o seu nome começasse aparecer para um outro público, o de literatura.
Embora seus romances se assemelhem bastante das estranhas histórias dos quadrinhos, Lourenço conseguiu imprimir uma voz própria na ficção, sempre pontuada pelo escatológico, sombrio, com personagens que parecem perdidos no tempo, dentro de uma outra realidade, que não se mistura de forma alguma com a realidade que observamos diariamente. Não é possível definir claramente a prosa de Lourenço, mas duas coisas unem todos os livros dele. A primeira é a linguagem, com diálogos sempre interessantes, e a segunda é a forma como ele cria os personagens de cada novo romance. Os protagonistas estão sempre no limite do absurdo. Parece que algo ruim vai acontecer a qualquer momento. Existe sempre esse tipo de tensão nas obras de Mutarelli.
Mutarelli é um escritor incomum. Não teve a literatura como a base da sua trajetória profissional, mas sempre que publica um novo trabalho literário a singularidade já se mostra nas primeiras linhas. Todos trabalhados no limite entre o real e o insano, com personagens misteriosos, nunca revelados totalmente. Ao final de cada leitura temos apenas algumas ideias de determinados protagonistas, tamanha a complexidade de cada um deles. Lourenço nunca entrega totalmente suas histórias para o leitor. Esse, sem dúvida, é o maior acerto das suas obras. Não é difícil, por exemplo, alguns questionamentos ao final da leitura dos livros de Mutarelli. O que aconteceu com Eugênio, de Jesus Kid, depois da página final? Nunca saberemos. É assim com os outros romances, não existem pontos finais. É como se os personagens ultrapassassem a barreira das páginas e continuassem em outra dimensão.
Lourenço Mutarelli escreve sobre o lado mais sombrio do ser humano. Isso faz dele um destaque entre os prosadores brasileiros. As histórias dele sempre começam de algo banal, sem acontecimentos impactantes. É quase um não-lugar, que vai caminhando para um lado incomum. Nunca se sabe para onde a história está indo. É quase como se o autor fosse perdendo o controle sobre a própria obra. O novo livro, o Grifo de Abdera (Cia das Letras), publicado depois de cinco anos desde o último romance Nada me faltará, traz mais uma vez a genialidade do escritor paulista. Começa com um curioso diálogo entre dois seres do espaço, para logo depois o narrador personagem dizer que é ele mesmo e um outro. Afirmando pela primeira vez, depois de vinte livros publicados, está contando uma história real. No Grifo existem cinco personagens: Mauro Tule Corneli (o narrador), Paulo Schiavino, Oliver Mulato, Raimundo Maria da Silva e Lourenço Mutarelli, todos alter-egos.No enredo Mauro Tule roteiriza os quadrinhos de Paulo Schiavino, sob o pseudônimo Lourenço Mutarelli. Raimundo Maria, o Mundinho, é a figura pública que representa esse codinome, uma persona artística dos dois, Além da fama que desfruta sendo escritor de mentira, ele faz isso por alguns trocados para beber cachaça.
A história começa a tomar um outro rumo quando Paulo morre e Mauro Tule resolve publicar sozinho o Cheiro do Ralo, seu primeiro romance. Entre idas e vindas no metrô, Mauro recebe de um desconhecido uma moeda grega, justamente o Grifo de Abdera, uma intrigante peça mitológica. A partir desse momento Mauro passa a ter uma estranha conexão com Oliver Mulato, um pacato professor de educação física. Todos os passos e pensamentos do professor são vistos por Mauro, que de uma hora para outra sabe dos pensamentos dessa pessoa que ele desconhecia até então. Oliver também muda o comportamento, falando coisas desconexas em determinados momentos, principalmente frases obscenas em espanhol, adotando uma postura parecida com a de Mauro Tule. Isso, lógico, causa sérios problemas para o professor. O romance entra em outro rumo, se tornando obsessivo e com várias reviravoltas. Depois de sofrer um acidente, Oliver começa a produzir um estranhíssimo quadrinho intitulado XXXX, com elementos que rementem aos sonhos e a irrealidade, com referências aos filmes pornôs dos anos 70. Essa HQ ocupa 80 das 260 páginas do romance. A figura desse outro duplo embaralha mais uma vez a narrativa, porque nesse quadrinho realidade e ficção também caminham de mãos dadas.
Em certo momento existe o encontro entre Oliver e Mauro, que percebe uma ligação ainda maior com o professor. O Grifo de Abdera se divide em três partes: O livro do fantasma, com a apresentação dos personagens; O livro do duplo, que é justamente o quadrinho produzido por Oliver; O livro do livro, a conclusão da obra, ou a suposição do final das complexas histórias. O Grifo é cheio de referências ao mundo real, cita escritores contemporâneos e fatos da vida e obra do Lourenço verdadeiro. Esse elo é importante, já que o romance trata exatamente do duplo, da autoficção, nesse caso elevada a níveis extremos. Os diálogos, é bom frisar, são interessantes. Nada sobra nas conversas entre os personagens. Uma influência clara dos quadrinhos.
É possível perceber um autor maduro, que sabe para onde está indo. São histórias que se entrelaçam de tal forma que as vezes não sabemos onde estamos. Se o leitor for atento vai perceber uma voz que flutua no livro, e não é a de Mauro Tule, sobrepostas as outras vozes, como um espectro que vai perpassando todas as páginas. Pode ser de um outro duplo, escondido entre as camadas experimentais da obra. Segundo Mutarelli todo escritor tem um duplo. Os nomes mais conhecidos da nossa literatura como Marcelino Freire, Marçal Aquino, Ferréz, entre outros, são apenas figuras públicas, recebem a fama e nada mais. O verdadeiro escritor fica nas sombras, produzindo sua arte em silêncio. É bom que se diga que Mauro Tule Cornelli tem até perfil no Facebook.
Com o Grifo de Abdera Lourenço Mutarelli deu um importante passo na carreira, exatamente por não ser apenas mais um livro, e sim um trabalho que eleva suas qualidades enquanto escritor diferenciado e de voz própria. O Grifo de Abdera na obra de Lourenço é um grande passo na direção do lugar pouco comum na literatura nacional. No Grifo ele mistura muitas referências e estilos que vem aperfeiçoando ao longo dos anos. O quadrinho encartado é uma prova disso. São vários Mutarellis: os reais e os ficcionais. Um livro desse tipo só é possível escrever quando se está impregnado de verdade, quando o mergulho é para dentro do personagem, nas loucuras de cada um deles. Sem dúvida, é o livro mais ousado do autor paulista, ao lado de Nada me faltará, apenas composto por diálogos.
Os livros do autor paulista carregam a marca do estilo fragmentado, de formas únicas para contar determinadas histórias. Mesmo assim sempre existe a sutil voz em suspenso, como nesse Grifo, nunca revelada explicitamente. Como o autor afirma ter visto um disco voador no Recife (veja entrevista aqui), é possível que os habitantes de outros planetas estejam fazendo algum tipo de experimento nele, entrando em nosso mundo através dos livros. Seria Mutarelli um ET?
De todos os livros, esse pode ser o mais difícil de filmar, justamente por conta dos vários duplos e do jogo narrativo dúbio, que empurra o leitor para diversas direções e nenhum lugar concretamente. E ainda tem a história em quadrinhos, que é essencial no romance. Já existe até uma produção em andamento, com o ator Otávio Müller no projeto. De qualquer forma, vai ser muito interessante ver na tela a solução do diretor para essa obsessão literária.
Depois da leitura do Grifo de Abdera só resta uma pergunta a fazer: quem é Lourenço Mutarelli?