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Por Ney Anderson

Em homenagem aos 10 anos do Angústia Criadora, escritores de todo o país falaram com exclusividade ao site sobre literatura, processo criativo, a importância da escrita ficcional para o mundo e para a vida e diversos outros assuntos. Leia a entrevista a seguir com o convidado de hoje. Divulgue nas suas redes sociais. Acompanhe o Angústia Criadora também no Instagram: @angustiacriadora e Facebook: https://facebook.com/AngustiaCriadora

 

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Sérgio Tavares é crítico literário e escritor, autor de Cavala, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura, e Queda da própria altura, finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura. Alguns de seus contos foram traduzidos para o inglês, o italiano, o japonês, o espanhol e o tâmil. Participou da edição seis da Machado de Assis Magazine, lançada no Salão do Livro de Paris.

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O que é literatura?

Literatura a forma d’eu me relacionar com o mundo. É meu acre, minha trincheira, meu asilo. É uma manifestação ambígua em mim, que me salva todos os dias e me amaldiçoa na mesma proporção. É um autoengano e uma glória suprema. É onde me escondo ao mesmo tempo que me exponho. É quando me sinto pleno e frustrado. É quando sou covarde e me refugio num território que não posso partilhar com quem eu amo. Literatura é o filtro para suportar a vida e suportar a mim mesmo.

O que é escrever ficção?

Escrever ficção é o ato mais presunçoso que existe. É dar forma a uma história que, durante muito tempo, faz sentido apenas para você e, depois de terminada, acreditar que o mundo tenha qualquer interesse pelo que foi concebido.

Vocação, talento, carma, destino… o escritor é um predestinado a carregar adjetivos que tentam justificar o ofício?

Sim, mas invariavelmente isso vai levá-lo ao fracasso. Não há nada de prodigioso ou de predestinado no ofício da escrita. É um exercício de prática, de treino. Escrever é se despir de encantamento, do deslumbre que coordenar frases possa insinuar. É estudar, ler incansavelmente, adquirir a lucidez de que o ímpeto não sucede se não houver a técnica, se não se cumprir satisfatoriamente os componentes de enredo. Há muitos entusiastas da escrita que acreditam que o fazer literário é simples, pois depende de uma boa ideia, um papel e uma caneta. Esses não têm ideia do tempo e da preparação que um autor pronto leva para chegar no simples.

Qual o melhor aliado do escritor?

Essa pergunta tem duas escalas de resposta. A primeira cabe ao ofício da escrita. E, neste caso, o melhor aliado é a autocrítica. Sempre acredite que o texto possa ficar melhor. Dê tempo para maturar, volte a ele e ache fragilidades, reescreva, peça para um leitor abalizado dar opinião, não tenha pressa. A segunda resposta diz respeito ao meio literário e, neste quesito, não há parceiro mais leal que a paciência. Salvo raríssimos exemplos, na literatura tudo é muito demorado. Encontrar uma editora, publicar o primeiro livro, conseguir visibilidade da crítica, conquistar reconhecimento e leitores. Isso leva anos, décadas, enquanto essa angústia vai lhe consumindo. Por isso, meu conselho sempre para quem cogita iniciar na carreira literária é: evite com todas as forças. Ou faça um pacto com o tempo.

E qual o maior inimigo?

É o autor acreditar que é melhor do que realmente é. Há escritores novatos que perdem muito tempo tentando provar para si que podem alcançar o nível de escrita dos autores que admiram, e inevitavelmente tropeçam em maneirismos, clichês, lugares-comuns. Escrever é escalar degraus. Invista naquilo que lhe parece fácil e descubra a sua voz nessa zona primária, de conforto. Não há problema algum em ser mediano, em estar incompleto. Perceber isso é o que lhe dará as ferramentas para garantir uma identidade futura.

Escrever é um ato político? Por qual motivo?

Se a escrita tiver alvo, sim. Acho muito pretensioso esse argumento de que toda a arte é resistência, uma contrapartida. Literatura é uma expressão muito ampla, onde cabe do manifesto à alienação. Há autores que escrevem para saciar uma vontade, para puramente entreter. Há autores, por exemplo, que conquistam um prêmio de repercussão nacional e nunca mais escrevem porque ganhar um prêmio nunca foi um plano, e sim uma casualidade. Reportando-me ao meu caso, meus dois primeiros livros foram um ato de combate a mim, produtos do exorcismo de dores e fantasmas. O terceiro, programado para sair este ano, é mais explícito na intenção de ser um instrumento de protesto a um passado sombrio de ditadura militar e de repúdio ao baú de ossos que o atual ocupante da presidência da República e seus aliados cismam em revirar.

Quais os aspectos que você leva em conta no momento que começa a escrever?

Eu sempre começo a escrever a partir do momento que tenho a primeira frase pronta. É uma mania. Mas, estruturalmente, costumo fazer um exercício que é ocupar uma parte da mente com o que chamo de fervura do enredo. Anoto algumas bases num caderno e, paralelamente ao que eu esteja fazendo, meu cérebro está comprometido com a história de forma constante. Daí, quando me sento para escrever, tenho tudo pré-fabricado e o trabalho, a partir daí, é dar coesão, coerência e acabamento.

A literatura existe para entendermos o começo, o meio ou fim?

A literatura existe, e isso basta. E existindo, ela é um produto do seu tempo que fornece variáveis para entendermos e explorarmos todas as linhas temporais. Mas, se tivesse de filosofar sobre o fazer literário, diria que é o meio, pois, como falou Borges, se todo autor escreve sempre o mesmo livro, nunca se alcança o fim, mas a incompletude.

Se escreve para buscar respostas ou para estimular as dúvidas?

No que diz respeito a nós, autores, certamente para alimentar dúvidas. Fazer literatura é, literalmente, viver num estado de angústia criadora. Sem exagero ou ironia, penso que deveria se fazer um estudo sobre os impactos psicológicos em tentar ou em ser um escritor em atividade no Brasil. Toda a expectativa, toda a exaustação, todo a espera, toda a frustração, toda a falta de grana que envolve a existência na escrita é algo desestimulante, mas que, ilogicamente, não detém a febre e o ímpeto. Por quê? Sinceramente, não sei. Por que me sinto culpado se passo um dia sem ler ou escrever? Quem me explica?

Criar é tatear no escuro das incertezas?

Talvez numa perspectiva romantizada do ofício literário. Criar de maneira profissional, à vera, é justamente o contrário: é ter total clareza de como estruturar o enredo, de como executar as transições, de como lapidar o estilo, de como desenvolver a temática, de como articular o conflito central, de como compor os personagens, de como compassar o andamento, de como criar pontos de tensão, de como estabelecer diálogos que não soem artificiais ou afetados. Criar de verdade é trazer a lume.

Cite um trecho de alguma obra que te marcou profundamente.

Um momento definidor no meu entendimento da escrita ocorreu quando li o ensaio “Teses sobre o conto”, que está no livro Formas breves, do argentino Ricardo Piglia. Ao me deparar com o trecho em que propõe que um conto sempre conta duas histórias, sendo um relato visível que esconde um relato secreto, de modo elíptico e fragmentário, uma chave girou na minha cabeça e mudou definitivamente a maneira de ler, explorar e desenvolver a escrita.

É possível recriar o silêncio com as palavras? Como?

Qualquer opinião ou explicação que eu dê aqui será medíocre diante do romance O silencieiro, do argentino Antonio Di Benedetto, no qual o protagonista foge de todo o ruído do mundo em busca do silêncio pleno. Benedetto, como tudo que produziu, é esplendoroso ao isolar o sentido puro da palavra silêncio e consignificá-lo em partes, ações e circunstâncias do enredo. Se alguém soube recriar o silêncio em palavras, foi ele.

Você acredita que qualquer pessoa pode escrever uma história? Mas, então, o que vai fazer dela escritora, de fato?

Qualquer pessoa pode escrever, pois é um ato de extensão à condição humana. Agora fazer desse material uma obra literária e, automaticamente, de seu autor um escritor, depende de um contexto que excede uma manifestação natural da vida. Empilhar tijolos não faz de ninguém um bom pedreiro, assim como a navalha não forma um barbeiro. A escrita, como todas as profissões, depende de estudo, de leitura, de conhecimento e de domínio das técnicas literárias. Não há casos de médicos por predestinação, assim com não há escritor agraciado por dom divino. Ter essa bagagem é o que vai diferenciar um escritor autêntico de apenas um entusiasta, um escrevinhador de história.

É preciso saber olhar o mundo com os olhos da ficção? O mundo fica melhor ou pior a partir dessa observação?

A literatura é tão poderosa que uma mesma expressão que tem a capacidade de contundência é capaz de suavizar uma realidade dura, despertar no leitor uma possibilidade de buscar refúgio das perturbações da vida. O caso é que a rivalidade com o mundo tem se demonstrado muito desleal, e a ficção se apequena, se mostra insuficiente diante da realidade insólita, perigosa, violenta, distópica, vilanesca que vivemos nos dias de hoje. Por isso, não faz sentido para mim, agora, produzir uma literatura que não for combativa.

Todo texto ficcional, mesmo os mais extensos, acaba sendo apenas um trecho ou fragmento da história geral? Digo, a ficção lança o seu olhar para as esquinas das situações, sendo praticamente impossível se ter uma noção do todo?

Um escritor que tem 10 livros publicados tem 10 ideias de livros a serem escritos. Por isso, quando esse escritor morre, morrem 10 livros que nunca iremos conhecer. A literatura se faz dessas existências e de inexistências, de fantasmas de leituras que nos assombram, de livros que iremos morrer e nunca serão lidos. Nós, escritores, somos esses fragmentos, esses elos que dão vida a histórias que farão com que alguém cheguem a outras histórias. Assim, penso que o papel mais valioso do escritor não é escrever livros, mas se valer de sua posição para indicar livros. Um bom escritor não é aquele que aprisiona o leitor no seu mundo, mas aquele que compartilha a literatura para todos.

Nesse sentido, uma história nunca tem início, meio e fim?

A do escritor, não. A literatura torna-o eterno. Cortázar sempre vai escrever a primeira frase de O jogo da amarelinha para aquele que abre seu livro pela primeira vez.

Você escolhe os seus temas ou é escolhido por eles?

Eu tenho total controle da argamassa literária, mas não da forma que ela toma para se construir. Em meu livro novo aconteceu algo interessante: tem um personagem fundamental para a trama para o qual eu estava com dificuldade de encontrar a persona. Escrevia e reescrevia, mudava a personalidade e até a aparência, mas não funcionava. Foi que me dei conta de que ele não era um tipo ficcional, mas a representação de alguém real, de uma voz muito popular em nossa cultura. Entendê-lo desta forma iluminou toda a trama e, a partir dele, tudo mudou, da condução temática aos desdobramentos, dando molde àquela matéria original.

É necessário buscar formas de expressão cada vez menos sujeitas ao cânone, desafiando a língua, tornando-a mais “suja”, para se aproximar cada vez mais da verossimilhança que a história pede? Ou seja, escrever cada vez “pior”, longe da superficialidade de escrever “certinho”, como disse Cortázar, talvez na tentativa de fugir da armadilha do estilo único?

Discordo. No papel de leitor crítico, tenho sentido, cada vez mais, falta da escrita simples, limpa, de frases enxutas e bem coordenadas. Deparo-me com autores iniciantes investindo num estilo em que a plástica tem mais apelo que o conteúdo, com uma estética carregada de representações visuais, de voos líricos, de volteios figurativos. Isso é o tipo de escolha que tem tudo para dar errado e, na enorme maioria das vezes, dá. Vira um truncamento de frases rebuscadas, floreios breguíssimos, metáforas canhestras e, pior, um maneirismo que o autor confunde com estilo próprio e o condena a ser uma caricatura de escritor. Não é preciso todo um contorcionismo narrativo para descrever um homem atravessando uma rua. A verossimilhança não cabe ao texto, mas na conexão que a frase faz com o entendimento e o vivido do leitor. Colocar muita pluma chama atenção para a pluma. Escrever é compor, narrar, relatar, descrever da maneira mais simples e clara, e isso é o suficiente.

Quando é que um escritor atinge a maturidade?

Essa pergunta é muito interessante, pois não tem uma resposta exata e única. Cada um tem o seu tempo e, inclusive, há escritores que levarão uma vida inteira sem chegar lá. Na minha perspectiva, o escritor atinge a maturidade a partir do momento que perde o encanto. A partir do momento em que entende que todo significado da literatura que não se conecte a um estado prático é mero capricho. A partir do momento em que o fluxo mental que compõe a história esteja sob o controle de uma experiência lúcida, de um ideário que saiba que precisa de uma coordenação técnica para existir. A maturidade vem quando a literatura vira o pedal e não a bicicleta.

O leitor torna-se cúmplice do escritor em qual momento?

Para existir a cumplicidade entre o autor e o leitor é preciso existir o livro. Erra feio, a meu ver, o autor que escreve pensando em qual leitor atingir, ou pior: pensando se vai incomodar esse ou aquele leitor. Não cabe, na essência da escrita, pressupostos. Mesmo porque a percepção de um livro é diferente para cada um que o lê. Assim, se o autor espera algum tipo de parceria com o leitor, que se preocupe em ser sincero com a essência de seu livro. Se é para o escritor agradar, que comece com ele mesmo.

Apenas um livro para livrá-lo do fim do mundo em uma espaçonave. O seu livro inesquecível. Qual seria?

Um dos meus livros preferidos: A invenção de Morel, do argentino Adolfo Bioy Casares. Esse é um livro cheio de elementos cifrados, que dependem de duas ou três leituras para se decodificar. E ainda há aqueles, tenho certeza, cujas chaves só fazem sentido para Casares e nunca saberemos quais são.

Qual a sua angústia criadora?

A frustração de saber que a essência da ideia nunca será transposta na íntegra para a escrita, pois, no caminho entre a consciência e o papel, a matéria se deforma.

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