
Por Ney Anderson
Em homenagem aos 10 anos do Angústia Criadora, escritores de todo o país falaram com exclusividade ao site sobre literatura, processo criativo, a importância da escrita ficcional para o mundo e para a vida e diversos outros assuntos. Leia a entrevista a seguir com o convidado de hoje. Divulgue nas suas redes sociais. Acompanhe o Angústia Criadora também no Instagram: @angustiacriadora e Facebook: https://facebook.com/AngustiaCriadora
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Hugo Pascottini Pernet nasceu no Rio de Janeiro em 1990. Formou-se em jornalismo pela PUC-Rio. É pós-graduando em Escrita Criativa (Nespe). Publicou Memórias da infância em que eu morri (Penalux, 2018) e Lembranças das drogas que me mataram (Penalux, 2019 – I Prêmio Book Brasil, categoria Romance Contemporâneo). Trata-se dos dois primeiros volumes da trilogia de autoficção Entre Realidade e Invenção. Hugo faz parte d’Os Quinze, grupo literário que publicou dois livros de contos: Contágios (Oito e Meio, 2016) e Ninhos (Patuá, 2019). Diário de um presidente: As aventuras de Jair na ilha de Dilma (Patuá, 2020) é seu terceiro romance.
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O que é literatura?
Acredito que todas as respostas possíveis e imagináveis já foram dadas para esta pergunta, de modo que seria impossível eu definir literatura sem esbarrar em frases já ditas por outros escritores. Então, influenciado pelas palavras desses escritores, indicarei as respostas que mais me marcaram. 1) “Literatura é linguagem carregada de significado em seu grau máximo.” – Ezra Pound. 2) “Literatura não é exercício de escrever bem, de forma acadêmica ou hermética. É contar bem – há mil formas de contar os mesmos fatos – uma boa história, do seu próprio jeito.” – José Castello. 3) “Literatura é a arte de incomodar por meio de palavras. Pois, a literatura, ou incomoda, ou não é literatura.” – José Castello. Agora, com as minhas palavras, vale dizer, também, o que não é literatura: Literatura não é mercado editorial, não é publicação, embora as duas coisas possam convergir em algum momento.
O que é escrever ficção?
Escrever ficção é ser esquizofrênico e, ao mesmo tempo, aceito pela sociedade. Digo isto, influenciado por uma frase atribuída ao romancista norte-americano Edgar Lawrence Doctorow: “Escrever é uma forma socialmente aceitável de esquizofrenia”. Escrever ficção é criar um quebra-cabeça de cem peças, o qual você montará noventa e cinco peças e deixará as peças restantes para o leitor encaixá-las nos espaços vazios. Escrever ficção é, também, transformar o mundo não escrito em mundo escrito. Digo isto, influenciado pela leitura do livro Mundo escrito e mundo não escrito, do escritor italiano Ítalo Calvino. Escrever ficção é criar mundos. A realidade é um caos, não tem sentido. Não digo isso com o tom e o sofrimento de uma pessoa deprimida, que repete: “A vida não tem sentido”. Não é “esse sentido” ao qual me refiro exatamente. Digo que a realidade não é regida por uma ordem interna. Um exemplo: Você acaba de receber, por telefone, a notícia da morte da sua mãe. Ao desligar a ligação, você continua trabalhando, não sente nenhuma compaixão, é totalmente indiferente à morte da sua mãe. De repente, você decide almoçar no bar do seu João e, no meio do caminho, um menino de rua lhe pede dinheiro. Você estende uma nota de dez reais na direção do menino. Esse exemplo pode acontecer na vida real, mas, em princípio, não pode acontecer em uma obra de ficção. Dei este exemplo para dizer que a obra de ficção, diferentemente da vida real, é constituída de uma ordem interna – deve obedecer a uma ordem interna – na qual todos os elementos devem cumprir uma função de modo que o mundo criado pelo autor faça sentido dentro daquele universo ficcional. O exemplo citado acima até poderia acontecer em uma obra de ficção, no entanto, o autor teria que construir muito bem determinados elementos da narrativa para que as ações do personagem – que não sente compaixão pela morte da mãe, mas sente compaixão pela pobreza de um menino de rua – façam sentido dentro daquele mundo criado. Escrever é, então, uma forma de controlar a vida; ao menos a vida criada e transformada em mundo escrito. Pode-se dizer que escrever ficção é brincar de ser Deus. Mas é aquela velha “história”: tem que saber brincar, “senão não desce para o play”. Ou não desça para o play e fique brincando sozinho dentro de casa. Não há mal nenhum em não querer brincar com outras pessoas. E isso, também, é escrever ficção.
Vocação, talento, carma, destino…..o escritor é um predestinado a carregar adjetivos que tentam justificar o ofício?
“Quando Deus nos dá um dom, também dá um chicote. E esse chicote se destina exclusivamente à nossa autoflagelação.” Foi inevitável não pensar nessa frase do escritor Truman Capote, que morreu de câncer de fígado, após múltipla intoxicação de drogas. Imagino que Capote recorreu ao uso de drogas para tentar se defender – ou amenizar a dor – das tais chicotadas. No entanto, gosto de pensar no ofício da escrita dentro da “escola” de escrita criativa que defende a existência de três dimensões: 1) Técnica: A técnica não deve ser vista como regras, fórmulas prontas, como uma esteira de produção industrial, mas, sim, como fundamentos, ferramentas da escrita. 2) Criatividade: Criatividade para encontrar o seu próprio caminho, a sua voz literária, algo próprio, original. A criatividade pode ser desenvolvida, aprimorada, a partir, por exemplo, da análise de outras obras. 3) Expressão individual: É algo internalizado, peculiar, próprio, em cada indivíduo. Está no DNA do indivíduo. Cada indivíduo é único.
A escrita criativa em três dimensões é muito mais importante do que seguir fórmulas, padrões. Muito mais importante do que estar na lógica do mercado, muito mais importante do que olhar para a literatura do ponto de vista industrial, massificado. É buscar arte e ofício, que têm suas regras e fundamentos.
Este conceito de escrita criativa em três dimensões me foi apresentado em uma aula da oficina do escritor Jéferson Assumção. Concordo com ele.
Qual o melhor aliado do escritor?
A melancolia é o melhor aliado do escritor. Acredito que nosso estado de humor influencia nossas ações. Nossas sensações influenciam nosso agir. Por exemplo: se estou muito feliz, quero ouvir músicas agitadas, quero dançar, quero ir a uma festa. Se estou meio cabisbaixo, prefiro ficar em casa, talvez ouvir uma música mais lenta, talvez ver na televisão algo que me distraia. Se estou deprimido, fico na cama. É importante saber diferenciar melancolia de depressão. A depressão até pode ajudar na produção de um escritor; uma ajuda a longo prazo, mas não imediata. Com isso, não estou romantizando a tristeza ou a figura do escritor deprimido, o escritor suicida. Não é nada disso. Acredito apenas que a melancolia seja o principal combustível do escritor. (O que não impede que o escritor, às vezes, seja movido, por exemplo, por uma alegria descabida.) Quando estou melancólico me sinto mais propenso a me dedicar a uma atividade ligada à criação. Talvez, por isso, Fernando Pessoa escreveu: “Viver não é necessário; o que é necessário é criar”. Não tenho medo da morte. Tenho, sim, um medo danado de “perder” minha melancolia; de perder as conexões necessárias dentro do meu corpo que produzem essa melancolia. Depois que escrevo, sinto uma paz, como se eu tivesse reorganizado todas as prateleiras bagunçadas dentro de mim. Por isso eu penso: Deus me livre de perder minha pobre melancolia! Imagine só como seria deprimente viver sem estímulo para escrever e viver em paz.
E qual o maior inimigo?
O maior inimigo do escritor é a insegurança. Essa insegurança pode se originar, ou se intensificar, em diversos meios sociais e de diversas maneiras. Exemplo: 1) A pressão familiar por um “sucesso” imediato pode trazer muita insegurança ao escritor (“sucesso” entre aspas, pois a definição de sucesso é muito subjetiva). 2) Falsas crenças estimuladas pela sociedade capitalista, competitiva e enquadradora na qual vivemos, como, por exemplo, a tal frase: “Você tem que ser alguém na vida”. Ou: “Você tem que vencer na vida”. Não estou fazendo apologia ao “fracasso” (“fracasso” também entre aspas, pois a definição de fracasso é muito subjetiva). Não. Você não tem que ser alguém na vida. Você não tem que vencer na vida. Você tem que viver. Em outras palavras: você não tem que escrever o próximo best-seller. Você tem que escrever o livro no qual você acredita, mesmo que não receba um centavo por isso, mesmo que seja um fracasso de vendas. Mas se você tem algo que considera importante dizer com aquele livro, vá em frente. Não modifique os rumos da sua história somente para enquadrá-la nos assuntos mais falados no Twitter. Até por que mercado editorial e literatura – apesar de terem convergências – são coisas diferentes. Como disse Nietzsche: “Muito pouco valor tem aquilo que tem preço”.
Mas, agora, repensando em minha resposta, me dou conta de que existe um inimigo “maior” do que a insegurança. É difícil escrever uma linha sequer quando a insegurança – ao ser instalada incessantemente, no organismo do escritor, por pressão familiar e por conceitos criados pela sociedade – se transforma em medo. Em um medo paralisante. Aí, meu amigo, uma possível obra de arte em construção – o que requer tempo – pode ser destruída em segundos e nunca mais se reerguer.
Escrever é um ato político? Por qual motivo?
Sim. Principalmente em um país desigual, como é o Brasil, a escrita deve ser encarada como um ato político, de resistência, sem, necessariamente, ser panfletária. Por exemplo: meu último livro, um romance satírico, intitulado Diário de um presidente: As aventuras de Jair na ilha de Dilma, aborda a situação política de nosso país. Trata-se de um livro político, sem ser panfletário, pois, ao narrar, eu não escrevi que o Jair é um presidente homofóbico, racista, genocida etc. Em vez disso, eu mostrei, por meio de ações do personagem, suas principais características desumanas. Será o leitor, nesse caso, que chegará às próprias conclusões se o Jair é homofóbico, racista, genocida etc. Escrever literatura não é como escrever um manifesto ou um abaixo-assinado contra a permanência de um presidente genocida no cargo de chefe do Executivo. Muitas pessoas sofrem com a herança estrutural de desigualdade do nosso país. Há “grupos” que são marginalizados, como, por exemplo, negros(as), índios, LGBTs e outros grupos que surgiram em defesa de seu posicionamento sexual. Para esses “grupos”, em especial, a escrita exerce um papel importantíssimo no âmbito político. No entanto, pode-se dizer que a escrita, em outras situações, não encarna o viés político. Por exemplo: escrever romances românticos, nos quais o leitor quer simplesmente saber se a mocinha vai ter final feliz com o galã, em princípio, não é um ato político. É simplesmente um puro ato de entreter o leitor. Não condeno esses tipos de livros. Há gosto para tudo. Vivemos em uma sociedade capitalista, na qual existe uma indústria cultural, na qual existe o mercado editorial. Onde uma editora, como qualquer empresa, precisa lucrar para dar sequência às suas atividades. Nesse âmbito, os livros escritos sem o objetivo de atentar para um viés político ganham importância, pois a venda desses livros de entretenimento – que, em geral, são os best-sellers – vão custear a produção de livros políticos e mais literários – que, em geral, vendem pouco. Se bem que escrever, no Brasil, onde as pessoas não gostam muito de ler, já é, por si só, um ato político, um ato de resistência, de luta, de sobrevivência.
Quais os aspectos que você leva em conta no momento que começa a escrever?
Começo a escrever quando tenho vontade. Não sou adepto da ideia de começar a escrever sem nenhuma ideia na cabeça. Pode-se dizer, então, que discordo da frase do pintor Picasso: “A inspiração existe, mas tem de te encontrar a trabalhar”. Para começar a escrever é preciso, ao menos, ter uma imagem ou uma palavra que poderão se transformar em uma linha escrita, que, por sua vez, poderá se transformar em um parágrafo; e assim por diante. Talvez eu pense dessa maneira, porque, para mim, escrever não é somente sentar na frente do computador e transformar minhas ideias em texto. Escrevo enquanto tomo banho; escrevo enquanto estou lavando a louça; escrevo enquanto vejo televisão; escrevo enquanto almoço e janto. E, então, somente me sento na frente do computador quando tenho vontade de transformar, em texto, todas as ideias que nasceram e se desenvolveram na minha cabeça, em forma de pensamento. Percebo, agora, que concordo com Picasso (“A inspiração existe, mas tem de te encontrar a trabalhar). Concordo, pois me dou conta de que estou à disposição do trabalho durante 24 horas por dia, e não somente quando sento para escrever.
A literatura existe para entendermos o começo, o meio ou fim?
Sobre a existência da arte – literatura –, arrisco-me a repetir a frase do dramaturgo Eugène Ionesco: “A arte – literatura – existe para ensinar às pessoas que existem atividades que não servem para nada, e que é indispensável que elas existam”. Resposta inspirada na leitura do livro/manifesto “A utilidade do inútil”, do filósofo Nuccio Ordine.
Se escreve para buscar respostas ou para estimular as dúvidas?
Eu escrevo para estimular dúvidas. A escrita, como uma expressão artística, existe para gerar questionamento, e não respostas prontas. Como disse o filósofo Theodor Adorno: “A obra de arte que esgota o pensamento e a reflexão não é uma obra de arte. Toda arte é uma incógnita.” Toda obra de arte é um quebra-cabeça que o artista monta junto de seus “observadores”, de seus “cúmplices”.
Criar é tatear no escuro das incertezas?
Sempre que tenho oportunidade, cito esta frase do escritor Affonso Romano de Sant’Anna: “Abrir-se à arte é dar um salto mortal no escuro, para que todos vejam”. Abrir-se ao processo criativo é dar um salto mortal no escuro, para que todos vejam. Isso é lindo e encorajador. Pois liberdade é risco; segurança é prisão. Como Clarice Lispector, estou sempre em busca da liberdade, principalmente, quando me ponho a escrever. Então, em todo projeto literário, ao qual me dedico, assumo o risco e o prazer de caminhar em direção à liberdade. Ou melhor: assumo o risco e o prazer de dar saltos mortais no escuro na direção da liberdade.
Cite um trecho de alguma obra que te marcou profundamente.
Para não ser injusto com autores e obras que me marcaram profundamente, cito um trecho que marca – e dialoga – profundamente o período de isolamento no qual vivemos. Ou melhor: marca a dificuldade de as pessoas seguirem a orientação de ficar em casa, o que, para muitas pessoas, significa conviver com a solidão.
Livro do desassossego, de Fernando Pessoa. N.283:
“A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do Destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai te ti, se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
“Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.”
É possível recriar o silêncio com as palavras? Como?
Sim. O silêncio nasce – e renasce – quando as palavras conseguem se esconder nas entrelinhas.
Você acredita que qualquer pessoa pode escrever uma história? Mas, então, o que vai fazer dela escritora, de fato?
Gosto muito desta frase do Saramago: “Somos todos escritores, só que alguns escrevem, e outros não”. Qualquer pessoa pode escrever uma história. Agora, se esta história vai seguir todos os elementos elencados por Aristóteles em sua “Poética”, se esta história vai obedecer às estruturas que se impõem à construção de uma narrativa de um romance, aí já é outra “história”. Observo, no entanto, que a literatura contemporânea inicia um gradativo rompimento – por parte de alguns autores – com a narrativa dita tradicional, embebida da teoria da “Poética”, de Aristóteles. Um exemplo é a escritora Rachel Cusk, autora de “Esboço”, primeiro volume de uma trilogia. Nessa obra, nada de extraordinário acontece. Pouco sabemos sobre a protagonista, que, ao longo da narrativa, ouve histórias de pessoas aleatórias. “Muitos escritores experimentais já transgrediram as convenções da narrativa, mas poucos – e Cusk sem dúvida está entre eles – encontraram uma maneira de fazê-lo sem sacrificar a tensão, o prazer e a vivacidade da leitura”, diz o texto de orelha do livro. Há quem diga que este tipo de narrativa não se enquadra na forma de um romance, mas afirma que, sim, este tipo de narrativa é literatura. Bom, mas esta questão é assunto para outra ocasião.
O que torna, de fato, uma pessoa escritora? Se eu seguir o raciocínio firmado até agora, respondo que é bem simples: o ato de escrever continuamente. Se você escreve histórias, você é escritor(a); reforço, com outras palavras, a frase de Saramago.
Se você escreve histórias, narrativas, você é escritor. No entanto, parece que, no Brasil, você não pode investir em uma vida dedicada à escrita se você é considerado um escritor mediano. Parece que somente pode investir em uma vida dedicada à escrita quem está em um patamar acima do mediano. É como se somente pudesse existir dois tipos de escritores: o bom e o ruim. E o ruim, em breve, será descartado. No entanto, eu não observo essa mesma visão de estar no mundo em pessoas que dedicam suas vidas a outras atividades. Por exemplo: se você é um médico mediano, você não deixará de atender seus pacientes. Se você é um professor mediano, você não deixará de dar aulas. E por aí vai… Mas se você é taxado de um escritor mediano – e não vende muitos livros, nem é notado pelos críticos literários de destaque do seu país –, haverá forças de todos os lados que o convencerão de parar de escrever, mesmo que você escreva há pouco tempo, mesmo que você esteja no início desta jornada, que é escrever, e que exige muito esforço, determinação e perseverança. Nenhum escritor nasceu pronto. Acredito que Machado de Assis passou pela sua fase de escritor mediano. Então, acrescento à frase de Saramago: Somos todos escritores, só que alguns escrevem – e perseveram –, e outros não.
Então, o que faz uma pessoa, de fato, escritora é sua regularidade e/ou compromisso com o hábito de escrever, sem, necessariamente, se comprometer com a publicação. Em geral, esses escritores, movidos unicamente pelo prazer de escrever, são movidos por este pensamento: “O processo é mais importante do que o produto final”. Por isso são escritores, e não meros publicadores. Para melhor ilustrar esse meu pensamento, cito Kafka e Van Gogh: Kafka escreveu sua obra e a guardou em um baú. Publicou apenas alguns contos em revistas literárias. Perto de morrer, pediu que queimassem toda a sua obra, guardada no baú. Por sorte, não obedeceram ao pedido de Kafka, e sua obra foi publicada, postumamente, em formato de livro. Eis a questão: então, durante a vida, durante as décadas em que se dedicou arduamente à escrita, sem publicar seus trabalhos, Kafka não era um escritor? Ele só se tornou um escritor “de verdade” com a publicação de sua obra, após morrer? O caso de Van Gogh é similar ao de Kafka, no campo da pintura: Van Gogh pintou arduamente e, vivo, vendeu apenas um quadro. Após a sua morte, seus quadros ganharam notoriedade. Eis a mesma questão: então, durante a vida, Van Gogh não foi pintor? Ele somente se tornou pintor “de verdade” depois de morrer?
Existe uma ideia muito errada de as pessoas pensarem que escritores são somente aquelas pessoas que publicam livros. Outra “péssima” ideia é a de que escritores de verdade são aqueles que publicam por editoras grandes, que ganham prêmios, que dão entrevistas, que aparecem na televisão, que vendem os direitos autorais para adaptação do livro em filme, que têm seus livros traduzidos para outras línguas. Este é um pensamento erradíssimo das pessoas; em especial das pessoas que não tiveram a coragem de se dedicar continuamente à escrita, com ou sem objetivo de publicar.
Infelizmente, hoje, a definição de escritor, vista pela sociedade, é bem cruel com quem tem talento para escrever, mas não tem talento para se divulgar. O escritor que ambiciona publicar e vender seus livros precisa ser uma espécie de empreendedor. Em princípio, hoje, uma editora busca assinar contrato com alguém que dê garantias de lucro. Isso significa, basicamente: algum famoso ou alguém com muitos seguidores nas redes sociais – ganhar prêmios também ajuda. Então, se você almeja receber a legitimidade de ser um escritor, por meio da publicação e aceitação popular, comece a aumentar o número de seguidores em suas redes sociais. Hoje, o caminho se tornou inverso: primeiro você fica famoso, depois você escreve e publica por uma grande editora.
É preciso saber olhar o mundo com os olhos da ficção? O mundo fica melhor ou pior a partir dessa observação?
Ítalo Calvino escreveu um livro intitulado “Mundo escrito e mundo não escrito”, no qual o autor argumenta, justamente, que existem dois mundos: o mundo escrito e o mundo não escrito. Concordo com Calvino. Às vezes até penso, inclusive, que o mundo não escrito só nos serve de fornecedor de matéria-prima que deve ser transportada para o mundo escrito. Ou seja, o mundo não escrito – o mundo real – serve para ser recriado no mundo escrito. Dito isto, é fundamental saber olhar o mundo – o mundo não escrito – com os olhos da ficção – do mundo escrito.
Por exemplo: nesse período de pandemia, quarentena, isolamento social, lockdown, as pessoas estão adoecendo dentro de suas casas e apartamentos, dentro deste mundo não escrito. Muitos recorrem a maratonas de séries da Netflix. É uma pena que poucas pessoas sabem, ou conseguem, se teletransportar para o mundo escrito, onde pode – ou não – haver pandemia: a escolha é sua. O funcionamento da realidade do mundo escrito depende da sua imaginação. Com isso, é até bom – e necessário – para o escritor viver períodos de isolamento. Mas sem a elevada ocorrência de mortes, por contaminação de um vírus, dentro do mundo não escrito.
Todo texto ficcional, mesmo os mais extensos, acaba sendo apenas um trecho ou fragmento da história geral? Digo, a ficção lança o seu olhar para as esquinas das situações, sendo praticamente impossível se ter uma noção do todo?
O escritor Marcelino Freire gosta de trabalhar com esse conceito de esquinas. Transcrevo uma fala do Marcelino, dita em sua oficina de escrita, que responde perfeitamente a essa questão:
“Um conto (romance) não começa. Um conto (romance) não termina. Um conto (romance) é como a gente pegar um trem em uma determinada estação. Este conto (romance) está vindo de infinitas estações anteriores. E quando eu deixo o conto (romance), este conto (romance) está indo para várias infinitas estações.”
“Quando eu abro um livro, aquele conto (romance) já está existindo, independentemente da minha leitura. Um leitor não faz favor ao escritor. As poesias, por exemplo, de Cecília Meireles, não estão esperando por mim, pelo leitor. Elas já estão existindo nas páginas, elas já têm um movimento muito específico.”
Faço questão de dar o crédito ao Marcelino, pois seria injusto dizer que estas sequências de palavras nasceram na minha boca. Concordo com a argumentação de Marcelino Freire.
Nesse sentido, uma história nunca tem início, meio e fim?
Não. Inspirado na resposta anterior, digo que a história narrada é um fragmento, um recorte, escolhido pelo autor, dessa viagem de trem que se inicia na estação 1 e não tem uma estação final.
Você escolhe os seus temas ou é escolhido por eles?
Acredito muito na atuação e importância do subconsciente para construção de um projeto que envolva criatividade. Com isso, posso dizer que escolho – subconscientemente – meus temas. Uma história que sentei para escrever aos trinta anos pode já ter sido iniciada, em meu subconsciente, quando eu tinha dez anos. No processo criativo, o subconsciente é uma peneira autônoma. Então, posso afirmar também que sou escolhido pelos meus temas. O processo criativo é algo mágico, algo que dialoga com o mistério, com a alma, de modo que qualquer opinião sobre processo criativo não ganhará a chancela da veracidade absoluta e imutável.
É necessário buscar formas de expressão cada vez menos sujeitas ao cânone, desafiando a língua, tornando-a mais “suja”, para se aproximar cada vez mais da verossimilhança que a história pede? Ou seja, escrever cada vez “pior”, longe da superficialidade de escrever “certinho”, como disse Cortázar, talvez na tentativa de fugir da armadilha do estilo único?
A citação do escritor José Castello, indicada na resposta à primeira pergunta – o que é literatura? –, responde a esta questão: Castello argumenta que “literatura não é exercício de escrever bem, de forma acadêmica ou hermética. É contar bem – há mil formas de contar os mesmos fatos – uma boa história, do seu próprio jeito”.
Quando é que um escritor atinge a maturidade?
Quando o meio legitimador de sua escrita diz que ele atingiu a maturidade. Ou seja, quando críticos literários dizem que o escritor atingiu a maturidade; ou quando booktubers dizem que o escritor atingiu a maturidade; ou quando influenciadores dizem que o escritor atingiu a maturidade; ou quando a legião de fãs do escritor diz que ele atingiu a maturidade.
O leitor torna-se cúmplice do escritor em qual momento?
O leitor torna-se cúmplice do escritor quando segura o livro, que comprou, ou ganhou, ou pegou emprestado. Nesse instante, o nome do leitor deveria vir escrito junto do nome do autor na capa do livro. Nesse instante, o leitor se torna coautor. Por meio dessa coautoria, um livro se transforma em vários, a depender de como o leitor construirá em seu imaginário a história que já foi pensada e redigida pelo escritor. Eis a magia da leitura.
Apenas um livro para livrá-lo do fim do mundo em uma espaçonave. O seu livro inesquecível. Qual seria?
Para não cometer injustiça com nenhum livro da minha lista de favoritos, escolho o mesmo livro do qual retirei o trecho da resposta 11: Livro do desassossego, do Fernando Pessoa. Porque, como disse Saramago, “Eu vivo desassossegado, escrevo para desassossegar”, eu também vivo desassossegado, escrevo e leio para desassossegar.
Qual a sua angústia criadora?
Saber que algum dia posso perder minha capacidade de criar, de escrever e de memorizar o que acabei de ler. Aí qual será o sentido da vida? A vida seria uma grande criadora de angústia.