Por Ney Anderson

Depois do elogiado “Na outra margem, o Leviatã” (2018), Cristhiano Aguiar retorna com um livro com nove contos que passeiam pela atmosfera sombria, povoada por histórias de fantasmas, vírus mortais, vampiros, mortos-vivos, assombrações diurnas, entre outras histórias. “Gótico nordestino” tem elementos narrativos ligados com a tradição folclórica da região, ancorados nos famosos causos contados de forma oral através dos tempos, mas conectados com a ideia do gótico, no mais tradicional terror e horror.

O autor cria as suas histórias de forma original, a exemplo das peripécias de um garoto, Chiquinho, que precisa atravessar vários quilômetros de um povoado no interior para entregar uma carta a um famoso cangaceiro local. Neste conto, intitulado de “Anda-luz”, reina justamente a força imaginativa do menino, com todas as lendas e fantasias preenchendo a narrativa, também com várias mortes ao longo do caminho que o menino se depara, reforçado ainda pelo sentimento de medo com a febre que assola o lugar. O percurso que o jovem faz é a grande sacada deste conto. Na época em que a história se passa, inclusive, o lendário dirigível Zepelim sobrevoa as cidades brasileiras, quase como um prenúncio da modernidade que o povo veria em décadas futuras.
No conto seguinte, “As onças”, moradores de uma pequena cidade tentam se proteger contra a invasão dos felinos assassinos. A personagem Diana, a protagonista dessa história, conduz a trama junto com a mãe. Aqui, as onças parecem servir como alegoria de invasão, de praga e, principalmente, do cerceamento da liberdade. Não por acaso, as cenas de puro horror que mãe e filha encontram nos arredores, quando precisam buscar remédios e suprimentos, se misturam com pensamentos sobre a ditadura militar em curso no Brasil. Esse é um conto bastante tenso, aliás, em que o leitor acompanha esperando por algo inesperado, revelado apenas na última linha, quando um segredo entre mãe e filha surge inesperadamente.

Ecos das “intermitências” de Saramago

A pandemia da COVID-19 se faz presente no conto “Lázaro”, sobre uma idosa dada como morta que ressuscita por algum efeito ainda desconhecido da ciência. Em seguida, outras pessoas também mortas pelo vírus começam a milagrosamente ressuscitar. Os ressuscitados, no entanto, se tornam uma espécie de estorvo, por já não serem as mesmas pessoas de antes. Tal qual nas “As intermitências da morte”, de José Saramago, a não morte se torna um problema, porque as pessoas não voltam do mesmo jeito, passam a “viver” como zumbis. Esse milagre confuso assume ares de ficção científica, pois os novos humanos quebram o código secreto entre a vida e a morte. Do que é morrer e, mais ainda, do que é (ou significa ser) estar vivo. As pessoas se tornam, de uma hora para outra, espelhos difusos do pós-vida.

Em “Firestarter”, colecionadores de incêndios buscam queimadas através de um aplicativo, num novo entretenimento macabro. São pessoas que juram fidelidade ao fogo, têm a estranha sensação de pertencimento, com picos de pura euforia e emoção em ser, literalmente, quase devoradas pelo fogo.

O Nordeste do título, claro, está presente em cada um dos contos, mas pintado com tintas que unem o que se supõe ser o tradicional da região, apesar de distante do puro estereótipo, trazendo através do gótico um outro formato ficcional. Em boa parte, os textos são focados (como não poderia deixar de ser) no território mítico que a região evoca a partir de diversos símbolos, como os que estão presentes em “A mulher dos pés molhados”. Nessa história, acompanhamos a suposta maldição de uma família desde quando um antepassado apareceu depois que o navio dele ficou encalhado na Paraíba. O pesadelo constante que a narradora (bisneta desse náufrago) tem com uma certa mulher de pés molhados e cheiro de mar torna o conto o mais fantasmagórico do livro.

As narrativas de Cristhiano Aguiar se sustentam pela força especulativa e imagética dos enredos. O leitor acompanha o desenrolar das histórias com real interesse, porque sempre existe algo a mais, não apenas o que está na superfície, pendendo, por vezes, para uma espécie de realismo mágico, quando detalhes corriqueiros ganham uma dimensão diferente. Sobretudo nas histórias onde a natureza dita as regras, como nos contos “Tecidos no jardim” e “Anna e os insetos”, dois textos com a cor local trabalhada não para documentar algo do passado, na tentativa de fincar um sentimento nostálgico, mas para mostrar que o passado e o presente podem, e devem, caminhar juntos compartilhando os seus abismos.

“Chamavam a Noiva de Mariazinha. Falavam de virgindade, embora não entendessem bem por quê. Ela ajudava os mais necessitados. Veio do interior para trabalhar em casas de família. Passou por sofrimentos, mas sem tirar do coração nunca, nunca, o amor a Jesus. Usava branco o tempo todo. Talvez os anjos a tivessem depositado ali no galpão. Ou os anjos a teriam largado na nossa cidade para nos ajudar? Ela agora seria capaz de realizar milagres… Teria sofrido um acidente, coitada. Deitou no galpão por nosso bem, deitou para cuidar e ser protegida por seus meninos”.  Trecho do conto A Noiva.

Em “Anna e seus insetos” acompanhamos a relação de um casal já perto do fim. As pequenas coisas que Anna nota naquele apartamento do Recife Antigo, os insetos que habitam a residência e a vida desta mulher, são tratados num tom quase sobrenatural.

Observamos aqui uma Recife moderna, mas que, nos pensamentos da narradora, não fez desaparecer a cidade de outrora, ao menos na imaginação dela. Os objetos de ambos, marido e mulher, se misturam com os sentimentos e pensamentos da relação há muito desgastada. Anna precisa viver a rotina de ausências do marido médico, acentuado ainda mais por conta de um lockdown que ela precisa também enfrentar. A formação do imaginário coletivo é bastante forte nos textos. O exemplo mais perceptível disso está em um dos contos mais regulares do livro, “A noiva”. O texto retrata o culto de alguns adolescentes ao redor de uma morta, encontrada em um galpão abandonado. Essa mulher desperta a curiosidade dos garotos, que começam a achar que ela é santa, mesmo sem eles entenderem que se trata de um possível caso de feminicídio.

No conto que encerra a obra, intitulado de “Vampiro”, essa figura mitológica que os mais velhos dizem habitar a cidade há muitos anos povoa também o imaginário coletivo da população. Além das crendices típicas do interior, da cidade povoada por fantasmas, o conto traz uma reflexão muito interessante sobre o bem e o mal, tendo a figura do suposto vampiro como alicerce para o andamento da narrativa.

“Gótico nordestino” é um livro divertido e bem-escrito. O autor soube criar personagens e boas tramas, fugindo dos arquétipos, tanto do gótico quanto do nordestino. É perceptível a influência da cultura pop na prosa de Cristhiano Aguiar. O autor conecta essas referências no livro unindo, por vezes, com a cultura oral do Nordeste, a partir da forma muito peculiar que as pessoas do interior têm em contar boas histórias fantasiosas, com os famosos elementos que provocam admiração e, muitas vezes, espanto no espectador.

Ainda que os contos de Cristhiano neste livro não sejam espetaculares, eles conseguem prender o leitor justamente pela suposição de algo que está por vir, num passeio quase sensorial por áreas rurais, do sertão, mas também pela metrópole e o litoral. O principal mérito dos contos é mostrar que sempre pode existir um outro lado para além do real e caricato, principalmente quando se fala em Nordeste, muito mais secreto e profundo do que a simples visão superficial é capaz de alcançar. Neste livro, observamos o assombro que se esconde quase sempre nas situações aparentemente simples e banais, escondidas nos detalhes, como só a boa ficção é capaz de fazer enxergar, mas que nunca desvenda totalmente o mistério oculto das entrelinhas.

Texto publicado originalmente no caderno Pensar, do jornal Estado de Minas, no dia 18/02/2022

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